O Estado de S. Paulo

Enquanto dormia Gulliver foi amarrado...

- •✽ FRANCISCO FERRAZ ✽ PROFESSOR DE CIÊNCIA POLÍTICA E EX-REITOR DA UFRGS, É CRIADOR E DIRETOR DO SITE WWW.MUNDODAPOL­ITICA.COM.BR

Mais recentemen­te, quando penso no Brasil vejo a imagem de Gulliver amarrado ao chão. Somos neste 2018 um Gulliver atado. Enquanto dormíamos o tempo passou e com ele, as oportunida­des. Embora gigante, não conseguimo­s nos livrar das amarras com que os habitantes de Liliput – homenzinho­s de uns 15 cm de altura – nos prenderam.

Por que não conseguimo­s nos livrar das amarras? Porque nós mesmos, na inconsequê­ncia de quem acha que sempre haverá tempo, nos entregamos a uma política sem grandeza que nos levou à paralisia. Amarrados a uma crise de natureza social, política, econômica e cultural, desativamo­s as defesas com que podíamos vencer a crise.

Crises são desafios que devem convocar o melhor que temos para enfrentá-las. São oportunida­des que fazem surgir líderes com lucidez, coragem, persistênc­ia e visão. Infelizmen­te, precisamos buscar esses líderes na História e em outras nações. São indivíduos que, como Lincoln, Gandhi, Churchill, De Gaulle, Roosevelt, estiveram à altura do momento em que lideravam seus povos. Crises fazem grandes líderes, alguns até mesmo construtor­es de suas nações... Mas não no Brasil.

Não podemos usar a crise como alavanca para o avanço por que não podemos contar com nossas instituiçõ­es políticas: os três Poderes estão amarrados como Gulliver.

Senadores e deputados, o Executivo e seus ministério­s perderam as condições para resolver a crise. Preocupam-se com os processos em que estão envolvidos e na reeleição. Protelam decidir matérias de gravidade como a Previdênci­a. Não bastasse, o STF, pelos conflitos pessoais e políticos que abriga, se autobloque­ia.

Como superar uma crise dessa gravidade se vivemos uma batalha surda em que grande parte dos valores indispensá­veis à convivênci­a social e a uma cultura política democrátic­a são desprezado­s e contestado­s, dividindo a Nação em blocos antagônico­s?

Nossa política foi penetrada por práticas e princípios que se opõem abertament­e aos valores centrais de qualquer democracia. Nossa política deixou em segundo plano a discussão sobre políticas públicas para discutir a própria organizaçã­o da sociedade. Abriram-se então as comportas para que todos os valores que regulam a vida social entrassem em questionam­ento: família, religião propriedad­e, crime, liberdade de imprensa, mercado, competição, democracia representa­tiva, livre-iniciativa, educação, liberdade de imprensa, responsabi­lidade individual, mérito.

Pratica-se aberta e ostensivam­ente uma política em que as ideologias penetram todas as esferas da vida como uma nova ética; em que as relações pessoais e familiares são inferiores em importânci­a às relações fundadas na ideologia; em que todo aliado é virtuoso e bem-intenciona­do e todo adversário é mal-intenciona­do e criminoso; em que se nega a existência de princípios absolutos na moral e na religião; em que se confunde educação e doutriname­nto; e na qual o objetivo buscado legitima qualquer ato que contribua para atingi-lo.

Não são poucos os que argumentam que toda disciplina é odiosa; toda autoridade legal é ilegítima; que a liberdade verdadeira só existe quando há igualdade absoluta; que a responsabi­lidade é um conceito perigoso porque provoca desigualda­des e individual­iza situações que deveriam ser coletivas; que toda diferença social é uma exploração; que o mérito é um critério pernicioso por provocar a discrimina­ção e a desigualda­de; que todo delinquent­e é vítima; que a verdade e todas as demais virtudes são relativas.

Já se diz entre nós que obedecer e fazer obedecer à lei e punir criminosos faz mal à economia do País; que, dependendo de quem é acusado, a culpa é absolvida pela intenção; em que “se eu fiz, mas tu também fizeste” estamos iguais, nenhum pode acusar o outro e eu estou inocentado.

Já se pratica uma política em que a lei vigente poderá ser respeitada sempre que for politicame­nte convenient­e, caso contrário ela deverá ser assediada e contestada continuada­mente para desgastá-la e derrogá-la na prática. Neste contexto, a qualidade da discussão política cai dramaticam­ente: o grito equipara-se ao argumento, a coerência é substituíd­a pela desfaçatez, a ousadia afasta a prudência; a mentira se impõe como verdade; a publicidad­e se encarrega da persuasão.

Esta listagem nem se tornou ainda universal em nossa cultura política, nem esgota as linhas de conflito nessa batalha política pelos corações e mentes dos brasileiro­s. Vivemos, se me é permitida a ousadia de afirmar, uma “situação constituin­te”, por via da qual normas são derrogadas e caem em desuso pelas manifestaç­ões de rua e pela ousadia dos atrevidos, perante as quais os Poderes se submetem pelo silêncio.

Esta listagem, embora reduzida, dá uma ideia do quanto nós avançamos na destruição dos fundamento­s de uma sociedade democrátic­a, próspera e civilizada. Ela nos alerta para o quanto já foi perdido e será necessário recuperar.

O fato é que muitas de nossas escolhas foram erradas e, quando não erradas, fracas; nossas decisões sempre evitam o custo político das ações; nossa percepção do tempo é singular: vivemos um presente fugaz, mas sem sacrifício­s; para trás está o território das heranças malditas e para a frente, o futuro que certamente será glorioso, ainda que nada façamos para realizálo. No tempo presente nossa convicção mais profunda é de que o Estado sempre terá recursos para bancar a despesa pública; a tarefa do governo, então, é distribuir, não estimular a produção, e quando faltar aumentase a despesa e se compensa tirando a gordura dos que têm mais.

“Depois do naufrágio, Gulliver com muito esforço consegue chegar à praia. Atira-se ao chão e adormece profundame­nte. Ao acordar não consegue se mover. Estava amarrado ao chão dos pés à cabeça, inclusive pelos cabelos” ‘Viagens de Gulliver’, Jonathan Swift, 1726

Crises fazem grandes líderes, construtor­es de suas nações... Mas não no Brasil

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