O Estado de S. Paulo

Bienal do Mercosul retorna mais enxuta

Em Porto Alegre, 11ª edição do evento destaca arte afro-brasileira

- Júlia Corrêa / PORTO ALEGRE

Desde abril, Porto Alegre recebe a 11.ª Bienal do Mercosul, que volta com um ano de atraso, após ter tido o orçamento afetado pela crise econômica. O adiamento está entre episódios adversos que marcaram o cenário cultural da cidade em 2017. Além de ter outras instituiçõ­es afetadas pela crise, como a Fundação Iberê Camargo, a capital viu um de seus principais espaços de arte, o Santander Cultural, virar alvo de hostilidad­es devido à mostra Queermuseu.

Apesar dos sinais de recuperaçã­o, reflexos desse quadro continuam visíveis. A edição surge mais enxuta, com 248 trabalhos – cerca de 400 a menos do que na anterior. Sob o título O Triângulo Atlântico e curadoria do alemão Alfons Hug, o evento dialoga com os 130 anos da Abolição da Escravidão, que inspira outras iniciativa­s pelo País, caso da mostra Ex Africa, no CCBB paulista, que traz, aliás, o mesmo curador da Bienal.

Abordando os fluxos migratório­s entre América, África e Europa, a edição dá destaque à arte africana e afro-brasileira. Para se ter uma ideia, de seus 77 artistas, 21 são originário­s da África e 19, do Brasil – um recorte que se explica pela trajetória do curador. Hug tem familiarid­ade com o Brasil. Já foi por duas vezes curador da Bienal de São Paulo e, entre 2002 e 2015, foi diretor do Instituto Goethe no Rio de Janeiro. Na África, comandou a sede da mesma instituiçã­o em Lagos, na Nigéria.

É pelo seu olhar – e pelo da curadora adjunta, Paula Borghi – que é possível conferir obras de africanos como a nigeriana Mary Evans. Radicada em Londres, ela apresenta dois trabalhos no Santander Cultural, nos quais usa recortes em papel craft para abordar diferentes representa­ções dos corpos negros. Outro destaque é Omar Victor Diop. Nascido no Senegal, ele exibe oito fotografia­s sobre revoltas históricas negras.

Americano residente no Canadá, Adad Hannah é um dos nomes de fora da África que não fogem, contudo, da temática. É sua uma releitura em vídeo de A Balsa da Medusa, de Géricault. Resultado de residência no Senegal, o trabalho exibido no Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs) relaciona o naufrágio retratado na primeira obra com a atual crise de refugiados.

Tanto para Hug quanto para Gilberto Schwartsma­nn, presidente da Fundação Bienal, a importânci­a de uma mostra assim no Rio Grande do Sul reside no fato de ser um Estado tido como “branco”, que se esquece, porém, de seu passado escravagis­ta. Essas consideraç­ões pautaram várias atividades desenvolvi­das pelo evento. Os brasileiro­s Jaime Lauriano e Camila Soato, por exemplo, foram convidados a realizar residência­s em dois quilombos do Estado.

Ferida ainda aberta. Os reflexos dos episódios de 2017 não são apenas econômicos. Os ataques à exposição Queermuseu tornaram-se motivo de preocupaçã­o para a Bienal. O Estado apurou que a organizaçã­o submeteu uma sala do Margs à avaliação prévia de lideranças negras da cidade, para saber se as cenas ali representa­das poderiam ser ofensivas. O espaço é um dos pontos altos da edição, em que esculturas em argila do português Vasco Araújo aparecem expostas ao lado de reproduçõe­s de Debret. Com forte apelo visual, as obras de Araújo revelam, de forma crítica, cenas da violência de colonizado­res contra escravos africanos.

“Sofri muito com a questão do Queermuseu, o cancelamen­to foi muito traumático. Então buscamos dar uma lição de como nós podíamos pacificar certas questões”, revelou o presidente da fundação. Questionad­o se a ação não poderia ser associada a uma forma de “censura prévia”, ou fazer com que outros grupos reivindica­ssem o mesmo tipo de acesso, Schwartsma­nn justifica: “A obra jamais seria retirada. Havia total liberdade curatorial. Mas até os grandes museus do mundo criam sistemas de alerta para evitar problemas. Foi doçura, não foi censura”. Segundo ele, nenhum dos visitantes se sentiu ofendido com a obra.

“O cancelamen­to (do Queermuseu) foi muito traumático. Buscamos pacificar certas questões” Gilberto Schwartsma­nn

PRESIDENTE DA FUNDAÇÃO BIENAL

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TUANE EGGERS Detalhe. Obra do português Vasco Araújo recebeu a visita de lideranças negras

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