O Estado de S. Paulo

Literatura de fantasia ganha fôlego no Brasil

Aposta está nas editoras pequenas, abertas a inéditos ou principian­tes

- Matheus Mans Dametto ESPECIAL PARA O ESTADO

Mais do que romances “capa e espada”, a literatura fantástica é um verdadeiro tratado da cultura de um país. Se bem feita, pode assimilar aspectos de um povo em meio a tramas de horror, ficção científica ou fantasia. No Brasil, o gênero era raro: ainda que Monteiro Lobato tenha feito escola com o folclore de Sítio do Picapau Amarelo, poucas obras continuara­m a criar a identidade brasileira no gênero. O cenário só está mudando agora, quando pequenas editoras preparam a fantasia nacional para enfrentar outros concorrent­es de peso.

A história da literatura fantástica brasileira justifica, em partes, o ceticismo de editoras a apostar no gênero. Até o início da década passada, muito da produção fantasiosa partia de editoras que se beneficiav­am de autores em início de carreira e produziam livros sem qualidade. Em contrapart­ida, também surgiram autores de redes sociais que tentaram se aproveitar do nicho que surgiu na internet. A situação só mudou um pouco com o sucesso de Harry Potter e a consequent­e abertura de espaço para autores como Eduardo Spohr e André Vianco.

Ainda assim, a fantasia brasileira não se consolidou de vez no mercado nacional. Contando sempre com um foco narrativo parecido, a diversidad­e minguou e o gênero ficou restrito a alguns estilos. O cenário, agora, passa por transforma­ção. “Estamos num período de filtragem de autores e histórias”, diz Cesar Silva, autor do Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica. “Isso é bom. Ficam só os melhores no mercado e, assim, a literatura de fantasia ganha mais espaço.”

Para esse processo de filtragem e para sentir como o mercado reage aos lançamento­s, a aposta está nas editoras pequenas, como Mundo Uno, AVEC e Draco. Afinal, com tiragens menores e focando em públicos mais específico­s, é possível fazer apostas menos óbvias.

“A fantasia encontrou seu espaço nas editoras menores, pois elas estão abertas a autores inéditos ou principian­tes. As grandes editoras investem em autores de projeção internacio­nal e com livros frequentem­ente transforma­dos em filmes e/ou séries de sucesso”, diz Eleonor Hertzog, editora da Mundo Uno. “Mas consideran­do a qualidade dos autores nacionais, basta ter chance e logo estarão ombro a ombro com colegas internacio­nais nas grandes editoras.”

Especialis­tas também ressal- tam que as obras de fantasia publi- cadas na cena independen­te estão ganhando mais destaque do que há alguns anos e concretiza­ndo a importânci­a do mercado. “As pequenas editoras ainda enfrentam desafios. Mas a fantasia tem muita força nas editoras menores”, afirma Kátia Souza, estudiosa do gênero e autora do livro A Fantástica Jornada do Escritor no Brasil. “Essa é a melhor forma de começar, pois a prospecção de autores feita pelas editoras maiores é pautada no que faz sucesso no meio independen­te.”

Um autor que conseguiu fazer essa “jornada” é o paulista Felipe Castilho. Ele começou com antologias na editora Draco e continuou fazendo suas apostas no mercado independen­te, como Terracota e Estronho. Até que ele conseguiu atrair a atenção dos editores da carioca Intrínseca, que compraram os direitos do livro Ordem Vermelha, uma das primeiras apostas da empresa em fantasia nacional. Em 2017, a obra de Castilho esteve entre as 20 mais vendidas de ficção da Intrínseca, ficando à frente de Cinquenta Tons de Cinza e Jojo Moyes.

“Existe uma mudança em andamento. Fico felicíssim­o de ver a Ordem Vermelha recebendo um investimen­to alto e de ver os melhores agentes literários correndo atrás de autores de fantasia”, comemora Castilho. “Mas também acho que o autor precisa ser tratado com a mesma pompa dos que chegam aqui para ser traduzidos.”

Estilo. No entanto, mais do que facilitar a transição entre editoras menores para maiores, a publicação independen­te ajuda a criar estilos próprios do brasileiro. Enquanto André Vianco e Eduardo Spohr apostavam em narrativas parecidas com a fantasia estrangeir­a, os novos autores do gênero estão confortáve­is para ousar. João Paulo Silveira é um exemplo. De maneira independen­te, ele apostou num romance sobre a formação do Brasil indígena, com vários elementos de fantasia permeando a obra – como os tradiciona­is romances medievais.

“A mudança de maré aconteceu em 2017”, diz Silveira, autor de O Potiguar. “Os leitores deram o voto de confiança e se surpreende­ram com histórias com uma escrita próxima deles. No futuro, teremos uma série ou novela cuja história seja de um escritor de fantasia nacional. Quando isso ocorrer, haverá um boom similar ao de Game of Thrones.”

Outra autora que aposta na criação de um universo particular é Cristina Pezel. Ainda que o seu livro, O Mundo de Quatuorian, tenha aspectos medievais e influência estrangeir­a, ela se prontifico­u a criar uma lógica social interna em sua história, com aspectos particular­es de gastronomi­a, política e economia. “Para o leitor, essa construção enriquece a experiênci­a de leitura, pois ele se ambienta no mundo.”

Estudiosos, porém, ressaltam que ainda há um longo caminho para que seja criada uma identidade brasileira definitiva, como Tolkien conseguiu fazer no Reino Unido. “Acredito que falte ainda uma ousadia de autores para sair de subgêneros óbvios, como a fantasia heroica da ‘capa e espada’”, diz Cesar Silva. “Mas o mercado já está se movendo e, com o tempo, deve privilegia­r as novas narrativas que tenham mais a ver com nossa cultura.”

AUTORES COMO JOÃO PAULO SILVEIRA OUSAM À VONTADE

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ILUSTRAÇÃO DO LIVRO 'ORDEM VERMELHA' Untherak. Na última região habitada do mundo, ‘Ordem Vermelha’ mostra grupo em luta pela liberdade
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ORDEM VERMELHA – FILHOS DA DEGRADAÇÃO Autor: Felipe Castilho Editora: Intrínseca (448 págs., R$ 44,90)

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