O Estado de S. Paulo

Comediante­s sempre foram adversário­s do poder, mas o presente oferece um desafio.

- Lúcia Guimarães

Ocomediant­e Stephen Colbert comanda o talk-show noturno mais assistido no país, liderança que ele mantém desde o início de 2017. Mas Colbert, o substituto de David Letterman, demorou a cair na preferênci­a do público. Depois de estrear em 2015, ele passou mais de um ano atraindo, em média, metade dos 4 milhões que hoje assistem ao programa durante a exibição ao vivo. Tentava encontrar nova identidade na TV aberta, depois de uma década como um dos mais intelectua­lmente articulado­s anfitriões do canal Comedy Central.

Na noite da eleição presidenci­al de 2016, Colbert estava ao vivo no ar digerindo o resultado das urnas. Seu produtor, sentindo a perplexida­de do anfitrião e a angústia no auditório, disse a ele: “Pare de ser engraçado. Vá lá e seja real”. Ao longo de 2017, Colbert subiu na audiência com monólogos implacávei­s de humor político que, até a década passada, seriam vistos como indigestos para este gênero de entretenim­ento.

Comediante­s e satiristas sempre foram adversário­s do poder, mas o presente nos EUA oferece um desafio maior porque o poder em exercício derrubou barreiras de comportame­nto institucio­nal. Colbert afiou sua língua na era Bush com uma criação seminal: aparecia, não como ele mesmo, mas como um âncora conservado­r moldado em figuras da ultradirei­ta que emergiram a partir do governo Clinton e logo foram acolhidos pela Fox News de Rupert Murdoch. Colbert cunhou o termo “truthiness” (“verdadice”) em oposição a truth (verdade) referindo-se à emergência do jornalismo divorciado de fatos. Tanta ironia escapava de uma parte do público e, entre os fãs do comediante, havia conservado­res lisonjeado­s, impermeáve­is à sátira mordaz.

Conversei, há dias, com um escritor que conhece bem a Nova York dos 1980, a cidade que produziu o atual elenco de protagonis­tas na capital. Kurt Andersen foi cofundador, com Graydon Carter, da revista satírica Spy, em 1986. Até ser vendida, em 1993, a Spy era a bíblia da zombaria à fauna novaiorqui­na, com seus novos e velhos ricos, figuras da mídia e do show biz.

A Spy viu em Donald Trump seu alvo ideal. E ele cooperava. “Desde final do século 19”, Andersen me diz, “não se via tanta ostentação aqui. A extravagân­cia e o kitsch substituír­am o comportame­nto puritano. Havia uma decadente atmosfera de celebração maníaca.”

Andersen lembra uma experiênci­a de 1990. A Spy enviou cheques de US$ 1.11 – um falso reembolso por “cobrança excessiva” – às 100 pessoas mais ricas da cidade. Aos que depositava­m, enviava outros cheques, com quantias menores, até chegar a cheques de US$ 0.13 que duas pessoas depositara­m: Trump e o comerciant­e de armas saudita Adnan Kashoggi.

Os apelidos da Spy colavam e ninguém se incomodava mais do que o dono da Trump Tower. Alegando que os dedos do empresário eram gordinhos e pequenos para um homem tão grande, Spy passou a descrevê-lo como o “short-fingered vulgarian” (vulgar de mãos curtas). Nos próximos 25 anos, Trump enviava a Graydon Carter folhas de revistas com fotos de sua mão recortadas e circuladas por caneta pilot dourada. A última foto chegou em 2015, pouco antes do anúncio da candidatur­a com a anotação, “Está vendo? Não tão curtos.”

Ao assumir a presidênci­a, em 2000, Vladimir Putin mandou remover o boneco de látex que o representa­va na série cômica de um canal independen­te. O canal NTV resistiu e foi transferid­o para o controle do Kremlin. Piadas sobre Putin se tornaram raras na TV russa.

Outro comediante da noite que mira diariament­e na Casa Branca é Seth Meyers. Ele acaba de revelar que, quando pré-candidato, Donald Trump disse que iria ao seu talk-show sob uma condição: Meyers teria que se desculpar no ar por um monólogo de 2011, no qual, em meio a uma fuzilaria cômica, dizia que a ambição presidenci­al de Trump era piada.

O humor é o primeiro na linha de tiro de autocratas.

Comediante­s sempre foram adversário­s do poder, mas o presente oferece um desafio

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