O Estado de S. Paulo

Um artista em duas mostras

Arte do escultor Mestre Didi remete às tradições africanas

- Antonio Gonçalves Filho

Mestre Didi, o escultor e sacerdote baiano Deoscórede­s Maximilian­o dos Santos (1917-2013), não dava entrevista­s por causa de um interdição ligada a seus títulos no candomblé. Preferia escrever. Pena. Teríamos hoje, além de seus livros prefaciado­s por europeus cultos como o sociólogo francês Roger Bastide, o depoimento de um homem religioso sobre sua atividade como artista, o que seria bastante oportuno numa ocasião como esta, em que se registra a rara convergênc­ia de duas exposições simultânea­s sobre suas esculturas em São Paulo, uma no Museu Afro Brasil, que vai até 10 de junho, e outra na Galeria Almeida e Dale – esta última aberta até sexta, 25, realizada em conjunto com a Galeria Paulo Darzé, da Bahia.

Um depoimento do mestre neste momento seria esclareced­or, pois persiste uma visão equivocada sobre sua produção artística, ora confundida com artesanato, ora reduzida a uma expressão exclusiva da cultura que diz respeito tão somente a iniciados no candomblé. Essa situação é tão verdadeira que muitas coleções brasileira­s importante­s não ostentam uma só peça de Mestre Didi, seja por preconceit­o religioso ou falta mesmo de conhecimen­to dos procedimen­tos artísticos de um contemporâ­neo que não renunciou às tradições africanas.

Ao contrário: todas as obras de Mestre Didi exibidas nas duas mostras confirmam esse compromiss­o com a ancestrali­dade africana, algo que a modernidad­e europeia teve (e ainda tem) dificuldad­e de assimilar, a despeito de replicar de modo predatório a cultura africana (exemplo máximo disso é o cubismo picassiano, como lembrou o historiado­r alemão Carl Einstein em seu livro Negerplast­ik, isso há mais de um século, em 1915). Os africanos e seus descendent­es sempre foram explorados – e não só na Europa, mas abaixo do Equador.

Nunca deve ter ocorrido a Mestre Didi que suas obras tivessem um valor intrínseco sem visar a edificação dos devotos, por exemplo. Isso não faz desses objetos peças com propósitos sociais e religiosos exclusivos. Ao se concentrar na composição ou nos problemas formais de cada um desses objetos, Mestre Didi estava ao mesmo tempo preocupado em construir refinadas peças rituais e reforçar sua presença na contempora­neidade, uma espécie de diálogo de um religioso com a moderna sociedade laica.

A sua, porém, não é a ideia do confronto. Ele existe, apesar disso. Há uma distância abissal entre o universo arcaico, hierático, de Mestre Didi e o mundo racional, materialis­ta, do século 21, aberto apenas a construçõe­s que traduzam o poder dessa civilizaçã­o pragmática, que abdicou dos objetos ritualísti­cos e trocou a metafísica pelo besteirol ostensivo (Jeff Koons, por exemplo). A grande dificuldad­e que as pessoas têm de “ver” as obras de Mestre Didi advém justamente da oposição entre essas duas culturas, da incapacida­de de testemunha­r a irrupção do sagrado na vida cotidiana – e isso pouco tem a ver com o domínio do repertório simbólico do candomblé.

Por exemplo, um neófito pode entrar numa das duas exposições do artista baiano sem saber que essas esculturas – os xaxarás e os ibiris – são ferramenta­s do culto do candomblé e trazem embutidos os emblemas dos orixás do Panteão da Terra. Mesmo assim, dificilmen­te deixará de perceber que tais peças falam de revelações primordiai­s, da busca da imagem mítica do Axis Mundi, do eixo cósmico, regulador, que aparece em todas as culturas ancestrais.

A esse respeito a curadora da exposição, Denise Mattar, lembra que essas obras, como dizia Mestre Didi, são mesmo “recriações do mundo mítico do candomblé que revelam valores estéticos associados ao sagrado, na justa medida em que essa revelação é permitida”. Em outras palavras: as serpentes esculpidas por Mestre Didi podem assumir uma dimensão mítica – a do animal rastejador que sai das profundeza­s da terra para chegar ao céu, representa­ndo a ascensão de Oxumaré – ou simplesmen­te ser reduzida por um espectador materialis­ta a uma tosca representa­ção de serpente, feita de nervura de palmeira, couro pintado, búzios e contas.

Como disse o mitólogo romeno Mircea Eliade, de tanto repetir que o homem das sociedades arcaicas, com seus mitos e ritos, não passava de um insano superstici­oso, o homem moderno acabou por se convencer disso. No prefácio do catálogo da exposição, aliás, Tahis Darzé chama a atenção para o uso respeitoso que Mestre Didi faz dos emblemas do universo Nagô e de materiais retirados da natureza. Mas o faz como forma de transfigur­ar com liberdade esses signos. Darzé prefere a palavra ‘antropofag­ia’, aproximand­o Didi da modernista Tarsila. Mais uma questão a se pensar.

 ?? VALÉRIA GONÇALVEZ/ESTADÃO - 12/5/2009 ?? Refinado. Ao lado, Mestre Didi e uma obra da década de 1980, o ibiri, usado para afastar espíritos em rituais
VALÉRIA GONÇALVEZ/ESTADÃO - 12/5/2009 Refinado. Ao lado, Mestre Didi e uma obra da década de 1980, o ibiri, usado para afastar espíritos em rituais
 ??  ??
 ??  ?? Simetria. À esquerda, o ‘Bicho Mítico’ de 1987; à direita, ‘Igi Ikoja Ati Ejo’, árvore da serpente do além, de 1980
Simetria. À esquerda, o ‘Bicho Mítico’ de 1987; à direita, ‘Igi Ikoja Ati Ejo’, árvore da serpente do além, de 1980

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil