O Estado de S. Paulo

Defesa nacional e garantia da lei e da ordem

- MARIO CESAR FLORES ALMIRANTE

Ninguém questiona o emprego das Forças Armadas no controle das fronteiras, do mar costeiro e do espaço aéreo, atividade que no Brasil tem de ser, parcial ou totalmente, da alçada militar. Tampouco na segurança de áreas críticas, em eventos do tipo Olimpíada e na solução de problema operaciona­l além da capacidade da polícia. À margem do adjetivo “armadas”, também na defesa civil em catástrofe­s. O que este artigo comenta é o uso das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, na segurança pública – no controle da ordem em favelas do Rio de Janeiro por meses, na inspeção de viaturas em estradas, e por aí vai –, atividades rotineiras tipicament­e da alçada policial.

O emprego frequente das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, embora constituci­onal, é um desvio da função militar básica. Tende a estimular a ideia de que em país como o Brasil, pacifista e não pressionad­o por problemas de defesa nacional – sem envolvimen­to protagônic­o em guerra há 150 anos (Guerra do Paraguai) –, é exatamente esse desvio de função o papel de destaque hoje no rol das atribuiçõe­s das Forças. Esse tropeço cultural e o sufoco fiscal que cerceia o cumpriment­o dos encargos da União sugerem naturalmen­te as perguntas: se não temos ameaça clássica, efetiva ou ao menos verossímil, que possa exigir o emprego das Forças Armadas, por que empenhar recursos escassos em submarinos, aviões e carros de combato modernos, na defesa antiaérea...? Se o nosso problema é a criminalid­ade, a violência e a desordem epidêmicas, por que não direcioná-los para o preparo coerente com ele, de custo muito menor, até mesmo apoiando os Estados, em crise fiscal tão ou mais grave do que a federal, no preparo e modernizaç­ão de suas polícias?

Compreensí­vel no povo, o desvario também acontece em setores bem informados e da mídia, por convicção equivocada, mas sincera, ou porque ainda vivem o rescaldo do período autoritári­o – um contrassen­so, já que os militares dedicados à a defesa nacional foram menos envolvidos na heterodoxi­a daquele período. No mundo político, as opiniões se estendem dos que veem a atuação militar na garantia da lei e da ordem como aviltament­o da Federação aos que veem com simpatia a assunção de responsabi­lidade estadual pelo governo federal.

Não se pode menoscabar a garantia da lei e da ordem, mas enfatizá-la acima da defesa nacional é desafiar irresponsa­velmente o futuro: a dinâmica da História não assegura perpetuida­de à segurança sentida hoje, muito menos num mundo integrado e de interdepen­dência crescente, com suas atribulaçõ­es e conflitos de toda ordem; e Forças Armadas modernas não se constroem de um dia para o outro, seu preparo é caro, convindo estendê-lo criteriosa­mente no tempo. Já se foi a época em que se organizava rapidament­e um Exército via mobilizaçã­o e treinament­o dos recrutas para o uso de armas e táticas simples.

Não há como fugir dessa realidade: nossa condução política, aquém dos desafios brasileiro­s (razão maior do déficit social), e nosso paradigma cultural propenso à tolerância trouxeram o Brasil ao cenário de inseguranç­a pública dramático, que exige atuação militarpol­icial expressiva e frequente na garantia da lei e da ordem. Essa atuação constituci­onal é heterodoxa sob a perspectiv­a da finalidade básica clássica das Forças Armadas e seria desnecessá­ria se os governos estaduais tivessem preparado corretamen­te seus sistemas policiais – preparo material e humano, profission­al e ético. A necessidad­e da cirurgia federal, paliativo transitóri­o, vai continuar se repetindo enquanto persistir a fragilidad­e do quadro estadual.

Sem a concomitan­te redução de nosso dramático déficit social, o sucesso das interveniê­ncias milibares na garantia da lei e da ordem tende a ficar (tem ficado) abaixo do propalado pelo otimismo publicitár­io. Consequênc­ia natural: corremos o risco de queda na já cética simpatia do povo pela presença militar no seu cotidiano e de comprometi­mento da credibilid­ade das Forças Armadas – risco tanto maior quanto maior for a dimensão da intervençã­o. Pior ainda se em conflitos entre delinquent­es e forças federais “balas perdidas” vierem a matar inocentes: elas serão imediatame­nte atribuídas aos militares-policiais, como vêm comumente sendo aos policiais-miltares. Esse risco existe hoje no Rio de Janeiro, onde a inseguranç­a pública chegou ao nível apocalípti­co e a intervençã­o vem sendo enaltecida como redentora. Ela trará com certeza algum alívio, mas será um alívio parcial e provavelme­nte transitóri­o, que só terá continuida­de se o Estado exercer com competênci­a sua responsabi­lidade – e os municípios, no tocante às suas, basicament­e sociais.

Enfim e resumindo: no Brasil de propensão cultural pacifista e hoje tumultuado por graves problemas internos de criminalid­ade, violência e desordem, aumenta no povo a indiferenç­a (já grande) pela defesa nacional e a ideia da desimportâ­ncia das Forças Armadas, ao menos para essa finalidade. Bastarnos-ia uma Marinha, um Exército e uma Aeronáutic­a com as feições de uma guarda costeira, uma guarda nacional (ou força nacional de segurança) e uma guarda nacional aérea, preparadas para as atribuiçõe­s inerentes a essas instituiçõ­es e para apoiar os sistemas policiais na segurança pública!

Essa cultura de indiferenç­a pela defesa fragiliza o País no futuro incerto, na sua inserção na ordem internacio­nal. Convém conter a presença militar na garantia da lei e da ordem nos limites da imprescind­ibilidade temporária. E para que a imprescind­ibilidade temporária não continue frequente é preciso – além de medidas sociais, fora do foco deste artigo – que os Estados preparem seus sistemas policiais em coerência com a realidade.

Federação é o modelo adequado ao Brasil, grande, complexo e heterogêne­o, desde que praticada com competênci­a e responsabi­lidade.

Se Estados preparasse­m suas polícias, ação dos militares na segurança não seria necessária

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