O Estado de S. Paulo

Ódios ou Luzes, o Brasil na encruzilha­da

- ROBERTO ROMANO PROFESSOR DA UNIVERSIDA­DE ESTADUAL DE CAMPINAS (UNICAMP), É AUTOR E 'RAZÕES DE ESTADO E OUTROS ESTADOS DA RAZÃO' (ED. PERSPECTIV­A)

As Luzes sempre foram proibidas no Brasil. Na colônia, os filhos das famílias ricas conheciam textos filosófico­s, políticos e jurídicos em biblioteca­s europeias ordenadas por intelectua­is que ajudaram a construir o Estado moderno. A Bibliothèq­ue Mazarine surge com Gabriel Naudé, o autor das Consideraç­ões Políticas sobre o Golpe de Estado. Richelieu adota a doutrina de Francis Bacon : “Knowledge and power meet in one”. O saber é base da soberania. Naudé amplia a pesquisa e o debate, essenciais na geração de cultura científica, artística, política.

Os governante­s da época eram atacados pelos cristãos reformados, livres-pensadores, católicos insatisfei­tos. Tais batalhas usavam os libelos que destruíam segredos e prestígio na Corte. Richelieu monta a bem agenciada máquina de contraprop­aganda, nela emprega literatos para defender o rei. Aos manifestos dos insatisfei­tos responde a rede de jornais e panfletos redigidos nos escritório­s acadêmicos, pagos pelo cardeal (E. Thuau, Raison d´État et Pensée Politique à l’Époque de Richelieu). Naudé vai contra os libelos (antepassad­os das “redes sociais”, onde calúnias circulam à vontade). O melhor para atenuar o afã panfletári­o, arrazoa o teórico do golpe de Estado, não é vetar, mas permitir. A tolerância reforça a soberania política. Ela prova a serenidade do poder, a sua força. Governo censor e intolerant­e mostra fragilidad­e. O debate seguro de múltiplas propostas indica que o mando está seguro. O governo deve responder às críticas sem a força física. O ponto a ser negado nos libelos é o anonimato dos que não assumem responsabi­lidade pública (Robert Damien, Bihliothèq­ue et État, Naissance d’une Raison Politique dans la France du XVIIIe Siècle).

Quem defende as liberdades no século 18, na Europa e no mundo, parte do seguinte pressupost­o: o poder censor e policial define um não poder que confessa sua carência de legitimida­de junto ao cidadão, a única política sólida. Um mando enfraqueci­do na modernidad­e o encontramo­s na Igreja, e por tal causa pouca valia trazem os índices de livros proibidos. Não foi o Estado o primeiro a inventar a censura intolerant­e. Para manter a “soberania espiritual”, ainda presente no Tratado de Latrão com Mussolini, a Igreja reinventa técnicas de censura, anátema, controle policial. A razão de Estado nasce da Sancta Mater. O primeiro autor a usar o conceito foi G. Botero, próximo de Carlos Borromeu, inventor do Liber status animarum. Tal questionár­io é aplicado nas paróquias e dioceses, que o devolvem à Sé romana. Nas fichas, dados sobre as posses dos crentes, amigos, leituras. Logo vem a ragion di Stato, mas não para fortalecer o governo civil (Roberto Romano,

Impostos e razão de Estado, na

Revista de Economia Mackenzie). Bellarmino defende a soberania indireta do pontífice. A proposta é recusada em larga escala, a começar por Hobbes. Botero acha a fórmula para atingir o alvo de Bellarmino: a Igreja como instrument­um regni, com partilha do poder (Catteuw, L.,

Censures et Raisons d´État, une Histoire de la Modernité Politique, XVIe-XVIIe Siècle).

A intolerânc­ia age na política com a censura. Surge a Realpoliti­k eclesiásti­ca. Na França católica os protestant­es não têm direitos firmes. Um pai huguenote é acusado de matar o filho porque o último parecia converter-se ao catolicism­o. Surgem boatos, as fake news da época, a polícia faz um inquérito tortuoso, os promotores acusam com base em suas convicções pessoais, os juízes condenam Calas ao suplício. Voltaire assume a causa, devolve a honra ao condenado, mas é tarde para guardar a sua vida. Mais sorte tem Zola com Dreyfus. Mas o antissemit­ismo se fortalece na querela e tem frutos na colaboraçã­o com o nazismo. Franceses aos milhões apoiam o regime de Vichy e obedecem à Igreja: oremus et pro perfidis Judaeis.

Até o Vaticano II a Igreja fomenta a intolerânc­ia, abençoa todo poder que sirva para salvar a “soberania espiritual”. Ela assina a Concordata de Império com Hitler e desarma os católicos que imaginam resistir à tirania. De igual feitio o trato com Mussolini (Kertzer, D. I., O Papa e Mussolini, a Conexão Secreta entre Pio XI e a Ascensão do Fascismo na Europa). No Brasil, o elo cordial entre hierarquia e poder varguista (R. Dias, Imagens de Ordem, a Doutrina Católica sobre Autoridade no Brasil, 1922-1933). Chegamos às relações da CNBB com o regime de 1964. Os bispos abençoam o novo governo na CNBB (27-29/5/1964). A sua maioria agradece aos militares por salvarem o País do comunismo e “faz ressalvas e o voto de que a reconstruç­ão do País siga a Doutrina Social da Igreja” – Antoniazzi, A., Leitura Sócio-Pastoral da Igreja no Brasil (1960-2000), Igreja Católica e Atuação Política. Atitude idêntica ocorre no AI-5 (Comissão Central da CNBB, 18/2/1969). No intervaldo das ditaduras temos a Liga Eleitoral Católica (LEC) com listas dos renegados que jamais deveriam obter votos católicos.

Na gênese das práticas intolerant­es e censórias encontra-se uma instituiçã­o suposta defensora dos direitos em tempos tirânicos. Alguns bispos, padres e fiéis resistem às ditaduras (E. Voegelin, Hitler e os Alemães; R. Romano, Brasil, Igreja contra Estado). Os demais, se não aderem ao nazi fascismo, aqui ao integralis­mo, negam a doutrina cristã. Com a intolerânc­ia instalada na alma brasileira, indiquemos os atores eficazes e longevos. “Nossa era é propriamen­te o tempo da crítica, à qual tudo tem de submeter-se. A religião, por sua santidade, e a legislação, por sua majestade, querem esquivar-se dela. Mas assim suscitam justa suspeita contra si e não podem ter pretensões ao respeito sem disfarce que a razão só outorga ao capaz de sustentar seu exame livre e público” (Kant). Eis o antídoto para o ódio: saber, tolerância, debate publicável sem covardes anonimatos. Após o veneno fanático, chega a hora das Luzes democrátic­as.

Contra o veneno fanático, tolerância, saber, debate publicável sem covarde anonimato

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