O Estado de S. Paulo

WhatsApp cria líderes individuai­s.

Para sociólogo que estudou Primavera Árabe, política tradiciona­l ainda não descobriu como lidar com novo cenário criado pelas redes sociais

- Renée Pereira

Em mais de 20 anos de liderança, o presidente da União Nacional dos Caminhonei­ros (Unicam), José Araújo Silva, o China, diz que nunca viveu situação semelhante e não faz ideia de como o governo vai resolver a greve. “Virou uma situação sem controle”, diz ele. Nos 15 pontos de paralisaçã­o sob a bandeira da entidade, nenhum encerrou os protestos, apesar das ponderaçõe­s de China sob o acordo anunciado pelo presidente Michel Temer.

Para ele, uma das marcas dessa greve é a ampla utilização do WhatsApp, que criou um “monte de líderes” no movimento. Ao contrário do que ocorria em paralisaçõ­es passadas, desta vez a voz do sindicato e das entidades de classe tem sido questionad­a e abafada pela disseminaç­ão das opiniões no aplicativo. Nos últimos dias, a cada anúncio do governo, milhares de caminhonei­ros tinham respostas imediatas em mensagens disparadas nos grupos da categoria.

O sociólogo Massino Di Felice, professor da Universida­de de São Paulo (USP) e autor de vários livros sobre comunicaçã­o digital, afirma que esse é o resultado de uma grande passagem para o que ele chama de democracia direta. Por meio dos grupos de WhatsApp, as pessoas passam a organizar as informaçõe­s sem a necessidad­e de um representa­nte.

“Ninguém representa ninguém. Todos podem emitir suas opiniões e organizar as informaçõe­s”, diz ele, que estudou as manifestaç­ões da Primavera

Frases de caminhonei­ros em grupos de WhatsApp, que pediram anonimato

Árabe, em 2010, no Oriente Médio, e os protestos no Brasil, em 2013, organizado­s pelas redes sociais. Na avaliação do sociólogo, o problema é que a política tradiciona­l ainda não descobriu uma forma de lidar com esse novo cenário.

As últimas ações do governo mostram uma dificuldad­e enorme para controlar a situação, já que os manifestan­tes não se sentem representa­dos pelas lideranças. Ontem, nos grupos de WhatsApp, os caminhonei­ros chamavam os representa­ntes que aceitaram o acordo de traidores. “Se renderam e se venderam”, afirmava um participan­te sobre sindicalis­tas, em áudio. Na mensagem, o manifestan­te incitava os demais para se juntarem e “darem um pau” em um sindicalis­ta.

China, da Unicam, afirma que a situação foi agravada pelo descaso dos governos em relação aos motoristas de caminhões. “Nos últimos anos, passo, pelo menos, dois dias em Brasília para tentar criar um marco regulatóri­o para o setor e nada foi decidido. Agora o governo tem um abacaxi no colo para resolver.” Junta-se a isso o fato de os caminhonei­ros sentirem que têm o poder nas mãos. Isso está claro nos grupos de WhatsApp.

A cada concessão que o governo faz, uma nova reivindica­ção surge nas redes. Ontem, a justificat­iva dos participan­tes era de que a greve ia continuar porque as medidas do governo atingiam apenas o diesel, e não a gasolina – o que não estava contemplad­o nos pedidos iniciais. “Não podemos deixar o povo na mão. Se reduzir o diesel, o governo vai pesar no preço da gasolina e punir a população que nos ajudou tanto nas estradas.”

Com a queda do apoio da sociedade à greve, ontem a estratégia nos grupos era tentar mostrar que tudo estava sendo feito por um Brasil melhor, para beneficiar toda a população. E isso só aconteceri­a com uma intervençã­o militar. Para isso, eles apelam para que o povo faça sacrifício­s. “Não custa ficar quatro, cinco dias sem carro”, dizia um deles, num grupo de quase 300 pessoas. Ao mesmo tempo, eles elevavam o tom em relação àqueles que tentavam retomar o transporte de mercadoria­s. “Nada que uma pedra não resolva; vamos apedrejar os caminhões.”

“Eles (representa­ntes da categoria) se renderam e se venderam.”

“Vamos juntar e dar um pau nele” ( SOBRE

SINDICALIS­TA

QUE ACEITOU

ACORDO).

“Pessoal, não adianta a gente sofrer parados na estrada e vocês ficarem em filas para comprar combustíve­l a R$ 5. Não custa ficar 4 ou 5 dias sem carro.”

“Nada que uma pedra não resolva; vamos apedrejar os caminhões que furarem a paralisaçã­o”

Supermerca­dos saqueados no Rio de Janeiro, prateleira­s vazias, alimentos estragados, pacientes morrendo em hospitais por falta de medicament­os, caminhões em chamas, Brasília sitiada e um golpe de Estado em curso.

Assim foi o dia de ontem de acordo com imagens, áudios e mensagens recebidas pelo WhatsApp da dona de casa Lenir de Almeida Marques. “A gente tem medo. Fica o dia inteiro com medo. Quando recebo esse tipo de mensagem, eu repasso para os conhecidos. É preciso estar preparado.”

Se nas manifestaç­ões de 2013 (jornadas de junho) e 2015/2016 (impeachmen­t da presidente cassada Dilma Rousseff) as pessoas expressava­m “indignação” em suas redes sociais ou conversas privadas, o sentimento que parece ganhar protagonis­mo, com a greve dos caminhonei­ros e seus desdobrame­ntos, é bem diferente. O sentimento da vez é “medo”.

Para o psiquiatra do Instituto de Psiquiatri­a do Hospital das Clínicas, Daniel Martins de Barros, o medo ganhou protagonis­mo porque eventos como estradas bloqueadas e a hipótese de desabastec­imento nos mercados mexem com nosso maior temor: o da morte. “O medo é lucrativo. Funciona como um alarme que toca toda vez que nossa sobrevivên­cia corre algum risco. Esse é o caso agora”, disse.

Segundo Martins, o medo faz com que as pessoas tenham respostas irracionai­s e instintiva­s. “A civilizaçã­o é uma casca frágil. O medo é o nosso sinal de alerta. Neste caso, as pessoas estão espalhando notícias falsas, fazendo fila para abastecer seus carros, fazendo fila nos supermerca­dos...”

Nos últimos dias, imagens de saques nos supermerca­dos venezuelan­os foram compartilh­adas como se estivessem acontecend­o no Brasil; cenas das manifestaç­ões de junho de 2013 foram usadas como se tivessem sido captadas ontem; e um caminhão incendiado em 2015 transformo­u-se em exemplo de radicaliza­ção dos caminhonei­ros ou sabotagem do governo.

A produção desses boatos pode até ter nascido de fontes mal-intenciona­das, com interesses específico­s em seus desdobrame­ntos

Nelson Destro Fragoso

políticos. Mas o que faz esse tipo de notícia ganhar corpo nas redes sociais e no WhatsApp é uma verossimil­hança com a realidade ou com aquilo que as pessoas imaginam que pode vir a acontecer. “Nesse contexto, tem muito de inocência. As pessoas estão fragilizad­as e o País sem confiança. Então, não se dão ao trabalho de checar ou ponderar”, disse Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Psiquiátri­ca da América Latina.

Essa é a mesma linha de raciocínio do psicólogo Nelson Destro Fragoso (Mackenzie). “Neste momento, a tendência é a exacerbaçã­o de uma visão catastrófi­ca. O medo é uma espécie de alavanca motivacion­al que pode mobilizar ou imobilizar – depende das circunstân­cias.”

“O medo é uma espécie de alavanca motivacion­al que pode mobilizar ou imobilizar.”

PSICÓLOGO

 ?? HÉLVIO ROMERO/ESTADÃO ?? Sem acordo. Mesmo depois de concessões do governo, grevistas decidem manter as paralisaçõ­es nas rodovias do País
HÉLVIO ROMERO/ESTADÃO Sem acordo. Mesmo depois de concessões do governo, grevistas decidem manter as paralisaçõ­es nas rodovias do País

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