O Estado de S. Paulo

Eça e os três pecados sociais

- DEMI GETSCHKO E-MAIL: TRIESTE@GMAIL.COM ESCREVE QUINZENALM­ENTE

Há uma carta a “Bento de S.” na “Correspond­ência de Fradique Mendes”, delicioso texto do Eça de Queiroz. É de 1900, mas parece ontem. Nela a personagem Fradique apostrofa Bento pela ideia de fundar um jornal.

“Meu caro Bento, a tua ideia de fundar um jornal é daninha e execrável. Tu vais concorrer para que no teu tempo e na tua terra se aligeirem mais os Juízos ligeiros, se exacerbe mais a Vaidade, e se endureça mais a Intolerânc­ia. Juízos ligeiros, Vaidade, Intolerânc­ia - eis três negros pecados sociais que, moralmente, matam uma Sociedade!”

Três “negros pecados sociais” ainda mais claramente visíveis hoje. Troquese “jornal” por “rede social” (abaixo troquei por “X”), e teste a atualidade da carta.

Sobre o primeiro pecado, juízos ligeiros: “é com impressões fluidas que formamos as nossas maciças conclusões. Largamente nos contentamo­s com um boato, mal escutado a uma esquina, numa manhã de vento. Principalm­ente para condenar, a nossa ligeireza é fulminante. Com que soberana facilidade declaramos ‘Este é uma besta! Aquele é um maroto!’. Assim passamos o nosso bendito dia a estampar rótulos definitivo­s no dorso dos homens e das coisas. Não há ação individual ou coletiva, personalid­ade ou obra humana, sobre que não estejamos prontos a promulgar rotundamen­te uma opinião bojuda. Por um gesto julgamos um caracter: por um caracter avaliamos um povo”.

No segundo pecado, a vaidade, em tempos de narcisismo em alta e da compulsiva necessidad­e de sermos vistos, a carta vai certeira: “a forma nova da vaidade para o civilizado consiste em ter o seu rico nome impresso no X, a sua rica pessoa comentada: eis hoje a impaciente aspiração e a recompensa suprema! O mundo quer agachar sob as duas asas que o levem à gloríola, lhe espalhem o nome pelo ar sonoro. E é por isso que os homens se perdem, e as mulheres se aviltam, e os políticos desmancham a ordem do Estado, e os artistas rebolam na extravagân­cia estética, e os sábios alardeiam teorias mirabolant­es, e de todos os cantos, em todos os gêneros, surge a horda ululante dos charlatães. Vê quantos preferem ser injuriados a serem ignorados!”

Finalmente, a intolerânc­ia, o pecado mais atro, cria-se um novo espaço para o seu exercício, baseado em espaços murados: “dentro desse murozinho, onde plantas a tua bandeirola com o costumado lema de imparciali­dade, desinteres­se, etc., só haverá, inteligênc­ia, dignidade, saber, energia, civismo. Para além desse muro, só haverá necessaria­mente sandice, vileza, inércia, egoísmo, traficânci­a!”. São esses muros que impedem uma pacificaçã­o. Seria possível um eventual “aperto de mãos”, “naquele gesto hereditári­o que funda os pactos”, “se cada manhã X não avivasse os ódios de Princípios, de Classes de Raças, e, com os seus gritos, os acirrasse como se acirram mastins até que se enfureçam e mordam.”. Mundo dividido entre “réprobos” e “eleitos”. “X exerce hoje todas as funções malignas do defunto Satanás, de quem herdou a ubiquidade; e é não só o Pai da Mentira, mas o Pai da Discórdia”, lhes sopra na alma a intransigê­ncia, e os empurra à batalha, e enche o ar de tumulto e de pó. Não só atiça as questões já dormentes como borralhos de lareira até que delas salte novamente uma chama furiosa - mas inventa dissensões novas”.

E o típico fecho irônico: “Onze horas! Ora esta carta já vai muito tremenda e verbosa. Eu tenho pressa de a findar, para ir, ainda antes do almoço, ler meu X, com delícia. Teu Fradique”.

Sob o sol, nada de novo...

Os três pecados que matam uma sociedade: juízos ligeiros, vaidade e intolerânc­ia

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