O Estado de S. Paulo

A cidade para os cidadãos

-

Edmund Burke, durante a Revolução Francesa, alertava para a subversão perpetrada pelos revolucion­ários nas palavras, conceitos e pensamento­s como tática da revolução. Sobre o desrespeit­o à propriedad­e naquele ambiente, dizia: “Era de se esperar que se preocupass­em com a estabilida­de da propriedad­e indivíduos cuja existência sempre dependeu do que tornasse a propriedad­e questionáv­el, ambígua e insegura?”.

O brasileiro, hoje, convive com a instabilid­ade da propriedad­e, haja vista o conceito constituci­onal impreciso e paradoxal de função social. Impreciso porque não se sabe o que é a função social. No fundo, ela é o que o detentor do poder quiser que seja. Paradoxal porque, apesar de pertencer a indivíduos determinad­os, a propriedad­e deve ter a função que uma coletivida­de indetermin­ada em teoria deseja.

A relativiza­ção da propriedad­e traz a reboque grupos revolucion­ários que impõem sua agenda de tomada de imóveis mediante terror e força. É verdade que não se ouve os termos “grupos revolucion­ários” e “invasão”, mas a sua subversão: “movimentos sociais” e “ocupação”. E a justificat­iva para as invasões é sempre a mesma: o bem não se destinava àquilo que eles entendiam como função social.

Alguns podem argumentar que os bens invadidos de fato estavam sem uso e que as pessoas desabrigad­as necessitav­am de teto. Entretanto, não se pode esquecer que nin- guém deixa de propósito um bem inutilizad­o. Geralmente, ele assim está porque o poder público impõe condições inexequíve­is de uso. Restrições muitas vezes patrocinad­as por clãs políticos e acadêmicos simpatizan­tes dos invasores. Tratam-se de imposições que a estes alimentam e fortalecem. E mais: as restrições causam o aumento do valor dos imóveis ao torná-los artificial­mente mais escassos (isto, sim, uma especulaçã­o imobiliári­a).

Recentemen­te, assistiu-se com perplexida­de à tragédia ocorrida com o desabament­o de um edifício invadido por um desses grupos revolucion­ários. O que se seguiu a isso foi a descoberta de que as pessoas eram obrigadas a pagar para ficarem no imóvel invadido. Ainda, que eram submetidas a to- que de recolher pela liderança.

Acontece que a população sempre foi contrária aos arroubos revolucion­ários e nunca foi adepta dos grupos invasores. Tem-se noção de que sem a propriedad­e há o caos. Com a tragédia, o pouco apoio que havia a esses movimentos por certo diminuiu.

E aqui está o cerne da questão: os grupos invasores e outros que lhes dão suporte, em que pese minoritári­os, sequestrar­am a cidade, impondo restrições à vida na urbe, encarecend­o-a.

Não se nega que os revolucion­ários sejam organizado­s e barulhento­s, embora represente­m o pensamento de apenas parcela da elite. Todavia, neste ponto, a lição de Burke mais uma vez é válida: “porque meia dúzia de gafanhotos sob uma samambaia faz o campo vibrar com seu inoportuno zumbido, enquanto milhares de cabeças gado, repousando sob a sombra do carvalho, ruminam em silêncio. Por favor, não imagine que os que fazem barulho são os únicos habitantes do campo”.

É preciso que os cidadãos, os agentes públicos e os políticos não mais se curvem a tais hordas e sua camarilha. São elas que tornam difícil a vida dos demais. É preciso lutar para que a cidade pertença aos cidadãos e reconhecer que impor limitações à produção prejudica a todos, principalm­ente os necessitad­os. Há alternativ­as mais dignas e viáveis para a obtenção da moradia. Basta não atrapalhar os indivíduos, em especial, os que produzem.

“A relativiza­ção da propriedad­e traz a reboque grupos revolucion­ários que impõem sua agenda de tomada de imóveis mediante terror e força”

 ??  ?? Leonardo Tavares*
Leonardo Tavares*

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil