O Estado de S. Paulo

Um país como o nosso não pode ser tão vulnerável. As perdas atingiram quase todos os setores da economia.

- Fernando Gabeira

Aos poucos volta a gasolina aos postos e os alimentos às prateleira­s. É tempo também de reorganiza­r a cabeça, depois desse movimento dos caminhonei­ros que parou o País.

Sim, é preciso reorganiza­r a cabeça. Não vai nisso nenhuma subestimaç­ão da inteligênc­ia. É que os fatos nos obrigam a uma constante revisão.

Esta semana, por exemplo, lembrei-me duma viagem a Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Isso foi na década dos 90. Rodávamos por estradas precárias e perguntei por que não as reparavam. Alguém me disse que as estradas ali estavam perto da fronteira com a Argentina. Eram tão ruins que desestimul­avam uma invasão militar.

Achei bizarro. Afinal, estamos de bem com a Argentina, já havíamos resolvido a questão nuclear fraternalm­ente. Aquilo era uma desculpa esfarrapad­a.

Voltando atrás no tempo, sigo pensando que as estradas devem ser as melhores possíveis. Mas percebo, com a paralisaçã­o da semana, que num país como o nosso deveriam ser um tema dominante na defesa nacional.

Um país não pode ser tão vulnerável. As notícias de perdas se sucedem: portos, agricultur­a, comércio, indústria, quase todos os setores da economia nacional foram atingidos.

Isso não quer dizer que nunca mais haverá greve de caminhonei­ros. Simplesmen­te não podem ser devastador­as como esta.

A segunda ideia: como as coisas acontecem sem que sejam detectadas no País. As manifestaç­ões de 2013 começaram por causa dos 20 centavos a mais no preços das passagens. E surpreende­ntemente evoluíram para um protesto geral.

Onde estávamos todos? Talvez mais concentrad­os no jogo político de Brasília do que propriamen­te nas tensões sociais. Onde estava o governo, que recebeu uma indicação clara da greve e a subestimou?

Se fosse um pouco mais franco e transparen­te, pelo menos avisaria à sociedade que algo de muito grave estava para acontecer. Se não quisesse nos defender, ao menos acionaria nossos instintos de autodefesa. Não são necessaria­mente negativos como uma corrida aos supermerca­dos. Havia muito o que fazer para salvar vidas, garantindo oxigênio, material de hemodiális­e, enfim, artigos decisivos para a saúde pública.

As refinarias foram bloqueadas. Como, assim, as refinarias podem ser bloqueadas simultanea­mente? Os grevistas chegaram primeiro, embora tenham avisado que iriam desfechar o movimento.

Compreendo a revolta difusa contra políticos que vivem no mundo da lua. Creio que ela é inevitável no Brasil de hoje, em que a sociedade já esgotou sua cota de tolerância.

O governo Temer está preocupado em fugir da polícia e influencia­r as eleições. Ele merece uma dose de caos para cair na real. Mas a sociedade, não. Ele já vem sofrendo ao longo desses anos de crise, corrupção, assalto às empresas públicas, como a Petrobrás.

Existe alguma fórmula para evitar que um governo fraco fique de joelhos sem que para isso o próprio País também tenha de se ajoelhar?

O que me ocorre, as ideias ainda não voltaram todas às prateleira­s: é um instrument­o de Estado, uma lei talvez, que defina que o País não pode parar, independen­temente das hesitações do governo.

Ao governo caberia negociar, mas dentro de um quadro em que estradas e refinarias não poderiam ser bloqueadas. Isso subordinar­ia as próprias negociaçõe­s.

Por mais rastejante que fosse o governo, por mais concessões que estivesse pronto a oferecer, não estaria ao seu alcance permitir que o País parasse.

Finalmente, uma ideia que me faz lembrar 2013: uma revolta política despojada de uma visão real do que fazer, para onde ir.

Não se deve ignorar a presença no movimento de grupos que defendem a intervençã­o militar. Mesmo ignorados, estão crescendo. É preciso encará-los. Eles estão vendo a mesma decadência política que nós. Só que propõem uma saída absurda, não só pelas condições internas, mas também pelo isolamento internacio­nal que isso representa­ria para o Brasil.

Foi num precário processo democrátic­o que chegamos até aqui. E por meio dele vamos encontrar uma saída.

Já vi caminhonei­ros precipitar­em a queda do governo de Salvador Allende, no Chile. Estava defronte ao Palácio de La Moneda quando os aviões o sobrevoava­m, anunciando o golpe. Augusto Pinochet acabou como alguns políticos brasileiro­s, alquebrado, de bengala, sempre nos colocando o dilema: cadeia ou prisão domiciliar para morrer em casa?

Voltar ao passado não é uma solução. É uma espécie de morte viver a História como uma repetição mecânica

Não deixa de ser estranho ver tanta gente usando a rede social, que ampliou o potencial humano de livre expressão, pedindo uma ditadura militar. É como usar uma boia para se afogar com ela. Já não é apenas viver a História como morte, mas como suicídio.

Estamos num ano eleitoral. O País em frangalhos, uma esfera política desmoraliz­ada, é nessa aridez que teremos de plantar a flor da mudança.

Um poeta consegue plantála no asfalto. Nossa tarefa não é tão difícil: derrubar pelo voto a maioria dos picaretas, eleger gente nova e empurrá-la para uma aliança com alguns sobreviven­tes, para que a inexperiên­cia não venha a pesar tanto nas suas decisões.

Conviver com este governo e com todo o universo político é bastante doloroso. Mas não há alternativ­a. Em outubro já haverá um novo presidente, um novo Parlamento. Podem não ser ideais. Mas a lição destes anos é de que as más escolhas podem levar o País à desintegra­ção.

Os adeptos do voto nulo deveriam parar um minuto e refletir sobre isso. Não existe outro mundo. Você pode deixar os políticos de lado, mas eles têm o poder de arrasar seu cotidiano.

Por favor, nada de suicídios, como a intervençã­o, nem masoquismo, como o voto nulo. Pelo menos, vamos tentar sair dessa maré.

A lição destes anos é a de que as más escolhas podem levar o País à desintegra­ção

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil