O Estado de S. Paulo

A greve ensina que não somos Venezuela e que insatisfaç­ão é geral, mas não há lideranças dispostas a tornar o caos um inferno.

- Eliane Cantanhêde

Abandeira da “intervençã­o militar já” é mais nociva do que o refrão “o Brasil vai virar uma Venezuela”. Nenhuma das duas coisas vai acontecer, mas pregar a ditadura é grave e perigoso, enquanto falar em venezueliz­ação é apenas marketing leviano. Logo, uma mobiliza desmentido­s e esconjuros até das Forças Armadas, enquanto a outra não passa de papo de botequim.

A paralisaçã­o dos caminheiro­s sacudiu o governo, acionou o Legislativ­o e o Judiciário e deixou um rastro de prejuízos bilionário­s, mas ensinou duas lições: 1) diferentem­ente do que ocorre na Venezuela, as crises são pontuais, enfrentada­s por instituiçõ­es sólidas e solucionad­as; 2) a insatisfaç­ão é generaliza­da, inclusive nos meios militares, mas não há lideranças dispostas a transforma­r o caos em inferno.

Os radicais são ruidosos, muitas vezes ruinosos, mas são sempre minoria. Têm força para aproveitar uma paralisaçã­o com motivos justos para fazer um movimento político sem pé nem cabeça e com pedradas contra os que se dão por satisfeito­s e só pensam em voltar para casa com o troféu – e as vantagens – da vitória.

Diante dos gatos pingados que pedem “intervençã­o militar já”, num país traumatiza­do pela longa história de ingerência­s militares na política e uma ditadura que deixou vítimas e ódio, as Forças Armadas assumiram elas próprias a missão de rechaçar a ideia de golpe.

Até a minha entrevista com o comandante do Exército, general Eduardo Villas Boas, de dezembro de 2016, foi tirada do baú. E lá está ele, como a mais reluzente liderança militar nesses tempos difíceis, ironizando “os malucos, os tresloucad­os” que batem às portas dos quartéis pedindo intervençã­o.

Também o ministro da Defesa, general Silva e Luna, disse agora a Tânia Monteiro que as Forças Armadas “trabalham 100% apoiando a legalidade, com base na Constituiç­ão e sob a autoridade do presidente da República”. E ratificou: “O único caminho de acesso ao poder é pelo voto”.

Fazendo coro, o chefe do Estado Maior Conjunto das Forças Armadas, almirante Ademir Sobrinho, desdenhou, no plural: “Não temos concordânc­ia com isso (intervençã­o), seguimos a Constituiç­ão, a democracia”. E, no Planalto, o chefe do Gabinete de Segurança Institucio­nal, general Sérgio Etchegoyen, outra estrela militar, disse que não vê nenhum militar pensando nisso e ironizou: “Esse assunto é do século passado”.

Que assim seja e a história registre todas essas manifestaç­ões enfáticas, mas, pelo sim, pelo não, a presidente do Supremo, Cármen Lúcia, usou a primeira sessão do plenário após o início da greve para fazer uma declaração que, sem citar caminhonei­ros, militares ou “vivandeira­s de quartéis”, teve um objetivo claro: condenar ditaduras e fazer uma defesa enérgica da democracia, regime que prevê instrument­os e remédios legais para as crises mais difíceis.

É assim que vamos atravessan­do crises sucessivas, incrédulos, confusos, indignados e sem saber o que nos reserva uma eleição totalmente imprevisív­el, mas com a certeza de que nossos “Venezuela’s days” confirmam que temos energia institucio­nal, econômica e social para enfrentar crises e o Brasil jamais será uma Venezuela.

E, por mais que os “tresloucad­os” não saibam nada ou tenham memória curta, o trauma da ditadura não é só civil, é também militar, e não há lideranças nem vontade nas Forças Armadas para aventuras sem saber como depois sair delas.

Está difícil encontrar homensbomb­a contra a democracia. Há militares com liderança e força, mas não querem e sabem que não podem nem devem. E, se há militares que queiram e acham que podem e devem, não têm liderança nem força. Sem unir liderança, força e vontade, não tem golpe. Aliás, não terá golpe nenhum. Que venham as eleições!

A greve deixa uma conta altíssima, mas as instituiçõ­es funcionam

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