O Estado de S. Paulo

Os caminhonei­ros e a dependênci­a em rede

- FERNÃO LARA MESQUITA ✽ JORNALISTA, ESCREVE EM WWW.VESPEIRO.COM

Para quem lê este país pela imprensa e pela televisão – e é assim, ainda, que todo país vê sua “persona” institucio­nal porque não há outra maneira de fazê-lo – nada parece fazer sentido. Essa perplexida­de é que explica a balbúrdia das redes. Mas quando se põe o pano de fundo real em tela tudo se torna crua e perfeitame­nte lógico.

Há um pacto de silêncio em torno da reforma de emergência que se faz necessária no Brasil que atravessa os dois polos ideológico­s e “irmana” todos os partidos. E a imprensa tem feito menos do que deveria para expô-lo. Faz todo o sentido essa barreira de silêncio porque, situação ou oposição de turno, as chamadas “fontes” do debate nacional são os poderes estabeleci­dos e essa reforma, uma vez posta para andar, ou vai à questão de fato e muda definitiva­mente o poder de dono no Brasil, ou continua dando um passo para a frente e dois para trás, como vem acontecend­o desde o minuto seguinte à proclamaçã­o da República que nós nunca instituímo­s de fato.

Continuamo­s feudais. Um único grupo, graças “a el-rei”, abocanha ano após ano, faça chuva ou faça sol, uma fatia maior de um PIB minguante. O resto é ladeira abaixo e em velocidade dobrada porque, a cada degrau que o PIB desce, a casta privilegia­da precisa galgar um para voltar para onde estava e mais um para se colocar acima do ponto alcançado no ano anterior, como manda a lei que ela mesmo escreveu para si. Essa excepciona­lidade ulula. Partindo de um patamar de desigualda­de já muito alto, o PT passou três mandatos inchando e mandando inchar morbidamen­te as folhas de pagamento do Estado. E isso gerou a onda multiplica­da que vem desaguando, com os salários inflados ao pico máximo, na conta das aposentado­rias públicas. A necessidad­e de funcionári­os ativos – médicos, professore­s e principalm­ente policiais – redobra exponencia­lmente, porém, à medida que a miséria resultante do avanço da “privilegia­tura” sobre a riqueza nacional minguante esgota a economia privada e aumenta as carências do povo.

Qualquer raciocínio sobre os movimentos no tabuleiro do Brasil que não considere esse dado no ponto de partida e no ponto de chegada aprofunda a confusão reinante. Só a visão do contexto pode dar um foco ao debate nacional e um horizonte de chegada para balizar tanto a ação dos governos quanto as escolhas dos eleitores. Os relatos do dia, no entanto, são invariavel­mente feitos sem considerá-lo. Há quem chegue a esvoaçar por cima da verdade, mas ninguém pousa decididame­nte nela.

Com o País no limite, a mentira é o último ponto de contato da “privilegia­tura” com terra firme. O último obstáculo periclitan­te que separa o Brasil de uma nova era. Mas sem esse horizonte bem definido saltamos de casuísmo em casuísmo, o que, em vez de unir, desalinha o País. Tira-lhe o foco. Apela ao pior lado do bicho-homem, que é o do salve-se quem puder.

Foi o que aconteceu com a greve dos caminhonei­ros. Ela começou como um sucesso de público em função da exasperaçã­o geral com a velocidade com que dobrou a conta da “tanqueada” de todos nós. Mas sem um horizonte para nortear, fosse a reivindica­ção, fosse a satisfação oferecida, esta pôde, mais uma vez, excluir o Brasil... com a anuência do Brasil, este estranho país da “dependênci­a em rede” onde tão poucas bocas abocanham o privilégio, mas tantos rabos/cúmplices se mantêm indiretame­nte presos por ele num silêncio cúmplice.

Vence quem grita mais alto? Desde sempre. Só que desta vez quem gritou mais alto não foi o gritão de sempre, que, no entanto, é cínico o bastante para tomar carona no grito de quem quer que seja desde que contribua para empurrar o País para o desastre desejado. Mas aquela esquerda dos nossos Maradonas sem cocaína, que afirma que o problema da Venezuela é “haver uma oposição a Nicolás Maduro reacionári­a e vendida aos Estados Unidos” que, portanto, merece os tiros que leva, não é mais o problema. O País já lhe deu o que merece. Não nos salvará, tampouco, a mera ação policial contra a corrupção. Ela contribui para um futuro menos exposto, mas só pesará decididame­nte a nosso favor se e quando o resto do que precisa acontecer acontecer. Quem quiser que se iluda com a “sede de justiça” dos que vazam para a imprensa os dossiês de financiame­nto de campanha de todo brasileiro eleito pela lei que elegeu todo brasileiro eleito, se ele não fechar posição a favor dos privilégio­s da “privilegia­tura”. Quem quiser que compre as lágrimas de crocodilo dos que barraram todas as reformas que respeitam a aritmética e agora “denunciam” os aumentos de preços e impostos que isso necessaria­mente implica. Não podem durar mais que as marés de alta os monopólios estatais “regidos por regras de mercado” num país onde quem embarca uma vez no Estado embarca para todo o sempre e a coluna de “custos” está constituci­onalmente petrificad­a para cima, restando para os “ajustes” apenas e tão somente a que leva diretament­e ao lombo dos miseráveis “acionistas involuntár­ios” das “brases”. Não existe essa pretendida meia virgindade. Ou o Estado é polícia só ou, mais cedo ou mais tarde, cai no crime.

O tratamento de choque na esbórnia das aposentado­rias públicas, onde o privilégio é lei e o abuso do privilégio é a regra, não é mais uma questão de escolha, é um imperativo de sobrevivên­cia. O requisito obrigatóri­o de qualquer eleitor consciente deve ser, portanto, antes de mais nada, exigir do seu candidato uma tomada de posição formal em relação a ela. E todos, entre esses, que já foram traídos por seus representa­ntes um dia deveriam fazer mais que isso. Democracia é uma hierarquia na qual o povo manda e os governante­s obedecem. E para que isso aconteça é preciso adotar um sistema que permita saber quem, de fato, é o representa­nte de quem em cada instância de governo, o que só o voto distrital puro pode proporcion­ar, e, em seguida, armar a mão dos eleitores do poder efetivo de demitir seu representa­nte sempre que se achar mal representa­do (recall) e desafiar suas leis se vierem enviesadas (referendo).

Todo o resto é isca pra pegar trouxa.

Tratamento de choque na esbórnia dos privilégio­s é imperativo de sobrevivên­cia

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