O Grande Irmão está espionando você
Adaptação de ‘1984’, de George Orwell, submete protagonista à alucinação com ares de ‘Vestido de Noiva’
Cuidado, se este texto tiver caído nas mãos do Ministério da Verdade, suas palavras podem ter sido mudadas. Não é de se surpreender que a melhor definição de ‘fake news’ venha de um jornalista. Mas o choque mesmo é saber que, em 1949, Eric Artur Blair, com o pseudônimo George Orwell, antecipou no romance 1984 a forma como um regime político pode lidar com o controle de informação e da comunicação no mundo. Tudo isso, quase trinta anos antes da internet ser sonhada.
Com estreia nesta sexta, 1.º, a peça com versão de Duncan MacMillan e Robert Icke e dirigida por Zé Henrique de Paula faz temporada no Sesc Consolação. A montagem quer menos reproduzir fielmente a trama para adentrar na mente do protagonista Winston Smith, um trabalhador de um regime totalitário com cores de um “Socialismo Inglês” que dedica seu trabalho no irônico Ministério da Verdade, onde reescreve notícias e artigos já publicados para que o registro histórico acompanhe a ideologia do Partido. “Algumas versões trabalham com a ideia de vislumbrar o futuro desse sistema, mas nessa peça existe uma atmosfera de conflito entre o real e a ilusão.”
No primeiro ato, o diretor descreve que a plateia será testemunha de uma tortura de Winston, no nada agradável Ministério do Amor. “A cena é ambientada em um espaço corporativo, como um antigo escritório estatal, feito para a burocracia. De qualquer forma, é o relato do que está acontecendo dentro de sua cabeça.” No livro, o homem é apenas um funcionário comum que fica desiludido com a própria existência até se apaixonar pela colega de trabalho, Julia, quando o sexo é permitido apenas para a procriação. Nos EUA, após a posse do presidente Donald Trump, a obra explodiu em vendas no início do ano com um aumento de 10.000 %, segundo a editora Signet Classics.
Além do estilo, a grandiosidade do romance está nos eufemismos e suas teorias para a manutenção da paz, da liberdade e da verdade. Nela, o Partido se esforça para suprimir a comunicação, com a ‘novilíngua’ e o ‘duplipensar’, que é a capacidade de aceitar crenças contraditórias ao mesmo tempo. É como contar mentiras deliberadas e acreditar nelas. Na casa de cada pessoa, as teletelas que ocupam a sala dão conta de espionar os hábitos das pessoas. “Acredito que a peça ganha uma camada semelhante a Vestido de Noiva”, diz o diretor, comparando à peça de Nelson Rodrigues. “Como se a alucinação e a realidade convivessem e ficasse impossível distingui-las.”
O que se seguirá após o martírio de Winston é que o homem será acompanhado pelo mentor e torturador O’Brien. No cenário, essas transformações vão tornando a presença do protagonista mais “virtual”. “Ele passa a ser despolitizado, tendo sua vida desmontada para que volte a funcionar de maneira inofensiva e de acordo com o desejo do Partido”, afirma o diretor. “Winston acaba virando um personagem de reality show, que tem o mesmo nome do Grande Irmão”, diz, referindo-se ao programa Big Brother (leia ao lado).
Com o clima sombrio, a peça encontra na tecnologia atual parte desse algoz. No mês passado, um casal nos EUA acusou o alto-falante Alexa, da Amazon, de gravar uma conversa privada dos dois e enviá-la para uma pessoa da lista de contatos. “São coisas que nos deixam com a pulga atrás da orelha”, afirma o diretor.