O Estado de S. Paulo

Vida após a morte

Fascinado pelo tema do luto, Alessandro Michele, estilista da Gucci, reinventa clássicos com irreverênc­ia e modernidad­e

- Maria Rita Alonso

A última moda entre as marcas de luxo é dizer que oferecem experiênci­as e não apenas produtos ou serviços. A intangibil­idade dessas coisas que aparenteme­nte não têm preço (mas que, logicament­e, têm sim e são superaltos) pressupõe o despertar de sensações fenomenais e inesquecív­eis. No caso das grifes de moda, há uma corrida para transforma­r desfiles em espetáculo­s grandiosos, que encantem os clientes, gerem desejo e rendam buzz no Instagram. Na quarta-feira, 30, a Gucci se superou nesse quesito ao reunir 400 convidados para apresentar a coleção Resort em Alyscamps, uma antiga necrópole romana, nos arredores de Arles, no Sul da França. Quer algo mais inusitado do que estender a passarela à noite entre sarcófagos de pedra, numa atmosfera absolutame­nte sombria reforçada por piados de corujas e música fúnebre?

Pois foi nesse clima meio sinistro que os modelos surgiram em procissão, iluminados por um rastro de fogo e por chamas de velas em candelabro­s góticos. Um vestido de veludo trazia um esqueleto bordado na altura do tórax, meninas com casacos longos carregavam flores como se fossem viúvas visitando um cemitério, algumas peças estavam estampadas com as palavras em latim “memento mori”. Traduzindo: lembre-se de que você vai morrer.

Para tocar no assunto tabu que são a morte e o luto, o estilista Alessandro Michele usou uma perspectiv­a bem pop, misturando referência­s históricas com roupas afetivas com cara de brechó (o que faz parte de seu repertório criativo). “O luto é um processo de transforma­ção que as pessoas precisam viver para conseguir passar para uma outra fase. Para mim, essa coleção de Michele foi pensada a partir desse conceito”, avalia Vivian Whiteman, editora de moda da revista Elle.

Michele buscou inspiração em togas, mantos clericais, assim como no estilo dos rappers e dos cowboys. Subverteu clássicos como o casaqueto e o cardigã exibindo versões feitas em couro no lugar da lã. A jaqueta bomber gigante ganhou franjado country e tailleur rosa angelical contrastou com a lingerie preta que lembrava o visual da Mortícia.

Considerad­o gênio fashion do momento depois de levantar as vendas da Gucci em mais de 40% no último ano, Michele causou frisson ao colocar modelos carregando réplicas de suas próprias cabeças entre macas de hospital, no desfile que fez em março, em Milão. Agora, que ele admitiu ver a morte com fasci- nação, bordou trechos da Divina Comédia de Dan- te em calças e casacos, e fez anéis com letras gigantes, usadas uma em cada dedo, formando as palavras Deus e Amor. Detalhes como pequenos morcegos-vampiros e crucifixos adornam peçaschave de décadas passadas como os chokers que se usava nos anos 1990.

Para François-Henri Pinault, presidente e CEO do grupo Kering, os desfiles de resort surgem como espetáculo­s autônomo, em vez de um show que acontece entre muitos outros durante as temporadas de prêtà-porter. Por isso, precisa ser especial. Essa área de Arles é conhecida por seus numerosos túmulos de bispos, foi referencia­da no Inferno de Dante e tornou-se o local de excursões de pintura para Paul Gauguin e Vincent van Gogh, no final do século 19. Depois do desfile, houve ainda uma festa no jardim de Alyscamps, aos pés da igreja medieval de Saint Honoratus, com show-surpresa de Elton John, que fez uma performanc­e emocionant­e, cantando cinco de suas músicas mais famosas.

Nascido e criado em Roma, dono de uma resiliênci­a impression­ante, o estilista aguentou firme por 12 anos no posto de sub da estilista Frida Giannini, antes de ser alçado ao cargo de diretor criativo da marca. Assistiu à sua ex-chefe amargar quedas e mais quedas de vendas, batendo na tecla da mulher sexy e poderosa, que era o tipo esperado da Gucci. Por isso, quando teve a oportunida­de de liderar a criação da Gucci, mirou nos millennial­s, nos nativos digitais, que ouvem rap e hip hop, e amam as séries de terror e de ficção científica da Netflix. Foi um renascimen­to.

QUER ALGO MAIS INUSITADO DO QUE ARMAR DESFILE ENTRE SARCÓFAGOS?

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FOTOS BERTRAND LANGLOIS/AFP Fúnebre. A passarela foi armada em antiga necrópole romana na França
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Gótico. Crucifixo arremata vestido; meias coloridas dão ar pop Impacto. Peças luxuosas contrastam com outras de estilo Mortícia

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