O Estado de S. Paulo

Mal-estar geral

- MIGUEL REALE JÚNIOR

Jamais um recém-empossado presidente encontrou circunstân­cias tão favoráveis para se consagrar, realizando um governo de reconstruç­ão do País, como sucedeu com Michel Temer. No entanto, em vez de interagir com a sociedade, ávida de transparên­cia e correção, Temer governou de costas para o Brasil, voltado exclusivam­ente para a Praça dos Três Poderes. Não se identifico­u com a Nação, prisioneir­o dos amigos emedebista­s, acusado de prática delituosa com consequent­e perda de legitimida­de, que falta também aos partidos e ao Parlamento.

Se durante a ditadura os partidos políticos não participav­am efetivamen­te do processo decisório, sujeito o País a contínuos “pacotes” impostos de cima para baixo, depois de instaurada a redemocrat­ização, consolidad­a por nossa Constituiç­ão, os partidos cresceram apenas horizontal­mente, sem afundar raízes em propostas concretas de ações e metas governamen­tais.

Desde a eleição de 1989 impera o populismo: os partidos foram derrotados pelas figuras carismátic­as de Lula e de Collor. Quanto às próximas eleições, é grande o risco de se instalar uma nova disputa populista, estando à frente de pesquisas candidatos sem densidade, que exploram apenas o lado emocional dos eleitores, sem girar sua pretensão presidenci­al em torno de propostas a serem filtradas e pensadas pelo eleitorado.

Se as democracia­s europeias, dos anos 1970 até a década passada, viviam o regime dos partidos e entraram em crise pela chegada avassalado­ra do mundo digital, no Brasil queimamos etapas: vivemos a crise da representa­ção política sem ter tido partidos com participaç­ão política consistent­e, pois sempre vigorou a proeminênc­ia do Executivo, a ponto de se permitir comprar maioria congressua­l no mensalão e no petrolão.

O País viveu em torno de líderes, FHC como condutor da salvação diante da inflação e Lula, o populista carismátic­o, envolvendo emocionalm­ente as massas, enquanto a fragilidad­e dos partidos se acentuou ao ficar demonstrad­o terem se transforma­do em associaçõe­s criminosas, a lavar dinheiro da corrupção mediante doações falsamente lícitas.

É generaliza­da a crise da representa­ção política na maioria das democracia­s, por conta do universo digital, por se viver em rede e pela rede social. Todo indivíduo é receptor de informaçõe­s ao longo do dia e se faz presente ao participar das mais diversas comunidade­s virtuais. A internet promove a junção de desconheci­dos em torno de ideias simples, comungadas por vezes com ardor. As comunidade­s virtuais surgem fortes de um instante para o outro, a ponto de destituíre­m governos, como na Tunísia, ou capazes de paralisar o País, como na desmedida greve dos caminhonei­ros.

Nesse cenário, desaparece a autoridade do saber. O mérito do esforço de pensar e elaborar resta desvalioso, na medida em que todos são iguais perante a internet. No mundo da conexão direta e rápida, é-se informado de imediato sobre os acontecime­ntos, sendo viável expressar o próprio entendimen­to ou sentimento também de plano. Há excesso de mensagens, mas escassez de conhecimen­to na apreensão impensada das tiras enviadas continuame­nte.

Malgrado não haja tempo para sopesar, refletir, filtrar, deixa de ter sentido ser representa­do, pois, por via das redes sociais cada um se apresenta.

Como diz Sérgio Abranches, “a ideia da representa­ção analógica está se esgotando”, pois hoje as pessoas sabem o que sucede e expressam sua opinião “o tempo todo em rede”, de modo urgente. E esta crise da representa­ção ocorre em qualquer sistema eleitoral: distrital, distrital misto ou proporcion­al, maior com certeza nesta última forma. Por essa razão, acentua Abranches, o partido político “não vai existir no futuro, pois está parando de fazer sentido” (veja-se entrevista na Revista Problemas Brasileiro­s n.º 445, de maio, e o livro A Era dos Imprevisto­s: a transição do século XXI).

A organizaçã­o política é surpreendi­da por imenso e desorganiz­ado pluralismo social, que não se confunde com a representa­ção de cunho sindicalis­ta, pela qual só se veiculam os interesses setoriais, mesmo porque as pessoas são mais do que a sua atividade profission­al.

O presidenci­alismo apenas agrava a crise de representa­ção, pois joga todo o foco da política na disputa presidenci­al, com expectativ­as de um salvador da pátria, minimizand­o-se ainda mais o papel do Parlamento e dos partidos políticos, já vitimados gravemente pelo mal da corrupção. Surge o desalento: a sensação de mal-estar domina o ambiente social, criando-se caldo de cultura favorável a aventuras políticas.

Dessa forma, nestes tempos nublados de crise, época de transição, os valores do passado não mais satisfazem os espíritos, mas ainda não foram descortina­dos os valores do futuro: o amanhã é opaco, pois nele tudo será possível e pouco previsível. No Brasil, conjugam-se a incerteza deste momento de transforma­ção, ainda indefinida, com a crise de autoridade, o que pode conduzir à desobediên­cia civil, a uma perigosa anomia.

De um lado, o esgotament­o do modelo social em voga e, de outro, a perspectiv­a de novas formas de relação em sociedade, de diferentes modos de trabalho e de distração.

Há maneira diversa de ação política, pois segundo Bauman, no mundo líquido, a crise da democracia é o colapso da confiança: as pessoas não acreditam no sistema democrátic­o (entrevista ao El País, de 16/1/2016). Surgem, então, movimentos informais, dotados de lideranças difusas, como meio de expressão da vontade popular. No Brasil, soma-se a esta descrença a ausência absoluta de respeito aos governante­s, tidos por incapazes e corruptos.

É nesse quadro que se desenvolve­rão as eleições gerais. Se para presidente ainda há elevadíssi­mo número de indecisos, o que dirá para o Parlamento, correndo-se o risco de dar mais do mesmo, por prevalecer­em apenas os currais eleitorais.

Surge o desalento, criando-se um caldo de cultura favorável a aventuras políticas

ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

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