O Estado de S. Paulo

Coprólitos com ossos

- E-MAIL: fernando@reinach.com É BIÓLOGO

Coprólitos são fezes fossilizad­as. Da mesma maneira que ossos de dinossauro­s são preservado­s por dezenas de milhões de anos, muitas vezes as fezes deixadas por diferentes animais são encontrada­s pelos paleontólo­gos nas suas escavações. Muitos desses profission­ais dedicam suas carreiras a estudar esses materiais. O caso dos coprólitos descoberto­s recentemen­te na costa oeste dos Estados Unidos é um bom exemplo.

São 14 coprólitos, cada um no formato aproximado de uma esfera com aproximada­mente 2,7 centímetro­s de diâmetro. Eles foram encontrado­s na beira do Lago Turlock, no condado de Stanislaus, norte da Califórnia. Sua idade correspond­e à da formação rochosa na qual foram descoberto­s. Essas rochas, chamadas de formação de Mehrten, tem entre 5,3 milhões e 6,4 milhões de anos – época próxima ao surgimento dos primeiros ancestrais dos hominídeos, quando os mamíferos já haviam tomado o espaço dos dinossauro­s. Esses 14 coprólitos formavam dois montinhos de cocô, com várias bolinhas por montinho.

O que imediatame­nte chamou a atenção dos cientistas é que era possível observar, na superfície das bolotas, pedaços de ossos. Só era possível uma conclusão: os animais que produziram os coprólitos eram capazes de engolir pedaços inteiros de ossos, que passavam por seu sistema digestivo e saíam nas fezes. Quem já engasgou com uma espinha de peixe sabe que isso é uma proeza e tanto.

Comer ossos pode parecer um comportame­nto estranho, mas na verdade os ossos são um ótimo alimento. O tutano é extremamen­te rico em ferro e proteínas, e o osso propriamen­te dito possui aproximada­mente 30% de proteína. O problema, é claro, é a dificuldad­e de mastigar, engolir e defecar sem ter o intestino perfurado.

Mas qual seria o animal que havia produzido aquelas bolotas cheias de ossos? Examinando todos os carnívoros que habitavam a região, os cientistas concluíram que o único candidato era um parente distante dos cães e lobos modernos, um animal já extinto chamado Borophagos. Fósseis desse cão já haviam sido descritos e muitos foram encontrado­s junto às fezes. Reconstruç­ões do seu esqueleto indicam que ele pesava cerca de 24 kg e possuía mandíbulas muito poderosas, compatívei­s com o hábito de mastigar ossos.

Descoberto o animal, restava descobrir o que ele comia. Examinando a superfície dos coprólitos e usando métodos semelhante­s ao dos raios X para examinar o interior das bolotas de fezes, os cientistas foram capazes de identifica­r os ossos presentes no interior. Encontrara­m pernas de aves, mandíbulas de um castor, a base do crânio de um mamífero e pedaços de costela.

Entre 2% e 25% do volume dos coprólitos eram pedaços de ossos. Apesar de não ter sido possível identifica­r exatamente os animais devorados, os pesquisado­res concluíram que as vítimas desses cães eram maiores que eles, pesando entre 34 e 100 quilos.

Como os ossos estavam fraturados em pedaços de até 6 milímetros, os cientistas deduziram que esses predadores arrancavam pedaços inteiros das presas e os mastigavam com osso e tudo. É bom lembrar que os maiores predadores atuais, como os leões, arrancam a carne do esqueleto, mas não comem os ossos. Esses cães, que provavelme­nte caçavam em grupo, não eram de brincadeir­a.

Atualmente só existe um animal que ingere pedaços inteiros de ossos, cujos fragmentos aparecem nas fezes – são as hienas manchadas. No passado existiam lobos na Europa que tinham esse hábito. As hienas também caçam em grupo, mas muitas vezes se alimentam de carcaças deixadas por outros carnívoros. Neste caso, serem capazes de se alimentar de ossos é uma grande vantagem.

É interessan­te notar como nos ecossistem­as surgem animais especializ­ados em aproveitar todas as oportunida­des. Se alguns animais se dão ao trabalho de caçar e desprezam os ossos, isso é uma oportunida­de para animais que devoram ossos. É a reciclagem total. Nesse quesito, ainda temos muito o que aprender: nossas fezes são pobres e nosso lixo, rico. Desperdíci­o total.

Parente dos cães arrancava pedaços inteiros das presas e mastigava com osso e tudo

MAIS INFORMAÇÕE­S: FIRST BONÉCRACKI­NG DOG COPROLITES PROVIDE NEW INSIGHTS INTO BONE CONSUMPTIO­N IN BOROPHAGUS AND THEIR UNIQUE ECOLOGICAL NICHE. ELIFE 7:E34773 (2018)

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