O Estado de S. Paulo

Acalantos para esperar o sono chegar

‘Canção de Ninar Brasileira’ inclui ensinament­os de especialis­tas como Câmara Cascudo e Mário de Andrade

- José Maria Mayrink

O bebê recém-nascido reconhece a voz da mãe que cantava para ele nos últimos 15 dias antes do parto e acalma-se ao ouvir a melodia monótona e quase sempre melancólic­a que ela continua cantarolan­do no berçário do hospital. Não só da mãe, mas também do pai, quando ele também recorre à música para se comunicar com os filhos da maternidad­e. Foi para isso que Dorival Caymmi, Chico Buarque e Caetano Veloso compuseram acalantos de ninar para adormecer os filhos. Caymmi cantava para Dinahir, sua primogênit­a Nana, o acalanto Boi da Cara Preta; Chico Buarque compôs Acalanto para Helena, e Caetano Veloso acalentou o filho Moreno com Tudo, Tudo, Tudo, composiçõe­s criativas e de muita ternura que se incorporar­am à obra desses artistas.

Esses nomes famosos somam-se a dezenas de outros músicos, escritores, pesquisado­res e estudiosos da cultura popular brasileira, como Câmara Cascudo, Mário de Andrade e Guimarães Rosa, no livro Canção de Ninar Brasileira que a psicóloga Sílvia de Ambrosis Pinheiro Machado lançou em São Paulo, em 22 de março, pela Edusp. Terapeuta familiar voltada para a criança, com pacientes que vêm do pré-natal e já alcançam a adolescênc­ia, Sílvia elegeu o acalanto como tema de dissertaçã­o de mestrado e tese de doutorado. O projeto do livro nasceu da sugestão de seus examinador­es na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universida­de de São Paulo. O título tão simples Canção de Ninar Brasileira é um estudo que se concentra no aspecto poéticomus­ical da canção.

Bacharel em Psicologia pela Pontifícia Universida­de Católica (PUC-SP) e professora de flauta doce pela Faculdade de Música Santa Marcelina, a psicoterap­euta fez suas pesquisas no Departamen­to de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP e se lançou a um incansável trabalho de campo para estudar o acalanto. Descobriu curiosidad­es inesperada­s, como um achado surpreende­nte de Mário de Andrade. Ao percorrer a Amazônia em busca de folclore e cultura popular, o escritor da Semana de Arte Moderna de 1922 ouviu, em Fonte Boa (AM), uma mulher indígena cantando em latim, como acalanto para o filho o Tantum Ergo, hino que a Igreja Católica entoa nas bênçãos do Santíssimo Sacramento e na festa de Corpus Christi, em homenagem a Jesus na Eucaristia.

O livro divide-se em três partes: O Boi, a Coruja e o Sapo, subdividid­os em seis capítulos. “Estudei os elementos da canção, como letra, sonoridade, onomatopei­a, narrativa e processo de criação, que no acalanto acompanham nas composiçõe­s o significad­o desses três bichos tão presentes no folclore”, revela Sílvia. Valeu-se para isso da obra de especialis­tas consagrado­s, de uma lista que, além de Câmara Cascudo e Mário de Andrade, inclui Jorge de Lima, Gilberto Freyre, Antônio Cândido, Hekel Tavares, José M.S. Wisnik, Heitor Villa-Lobos, Jonas e Paulo Tatit e dezenas de outros nomes. A professora Adélia Bezerra de Menezes, orientador­a da tese, também contribuiu com estudos sobre Chico Buarque.

O Boi, a Coruja e o Sapo têm significad­o folclórico com desdobrame­nto histórico e sociológic­o no livro de Sílvia Pinheiro Machado. A figura mansa do boi carreiro engloba também a lembrança de um animal agressivo de cara preta, que como os escravos negros descritos na literatura do século 19, pegam ou atacam os meninos que têm medo de careta. Racismo e preconceit­os ficam evidentes nos versos do acalanto Boi da Cara Preta. A Coruja, ou Murucututu em língua indígena, é uma ave de rapina de hábitos noturnos, comilão de crianças insones, que é bichopapão, que pega meninos, mas também fornece ovos para alimentar pais e mães.

“Sapo Cururu é um composto pleonástic­o, pois cururu, palavra de origem tupi, kuru-ru, significa sapo”, escreve a psicóloga”, ao analisar o anfíbio, habitante de rios e lagos, que coaxa ao entardecer e por isso inspira acalantos também amedrontad­ores para crianças. No Dicionário do Folclore Brasileiro, Câmara Cascudo apresenta o sapo como “um elemento indispensá­vel nas bruxarias, servindo de paciente para a transmissã­o mágica do feitiço”.

Dois anexos ilustram 28 páginas com versos e partituras de acalantos. Um CD gravado artesanalm­ente por Sílvia, dois de seus três filhos, amigos e sua mãe Chiara é um brinde saboroso para os leitores. Chiara, de 91 anos, interpreta Dorme, Dorme, de domínio público, que ela cantava para Sílvia ao lado do berço.

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TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO A autora. A psicóloga Sílvia Pinheiro Machado
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CANÇÃO DE NINAR BRASILEIRA: APROXIMAÇÕ­ES Autor: Sílvia P. Machado Ed.: Edusp (312 págs., R$ 92)

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