O Estado de S. Paulo

Decifra-me ou te devoro Causas da insatisfaç­ão continuam, tanto econômicas como políticas, e levam, na melhor das hipóteses, à abstenção eleitoral.

- •✽ FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Asemana que acabou ontem foi plena de tensão, demonstran­do a quem não percebera antes a profundida­de das dissensões que vêm de há muito tempo. As incongruên­cias da política econômica dos governos de Lula e Dilma, em sua fase final, já haviam levado a economia à paralisaçã­o e o sistema político a deixar de processar decisões. Daí o impeachmen­t do último governo, ainda que baseado em arranhões de normas constituci­onais.

Todo impeachmen­t é traumático. Fui ministro de um governo que resultou de um impeachmen­t, o do presidente Itamar Franco. Este, com sabedoria, percebeu logo que precisaria de um Ministério representa­tivo do conjunto das forças políticas. Como o PT, que apoiara o impeachmen­t do presidente Collor, se recusava a assumir responsabi­lidades de governo (com olho eleitoral), Itamar conseguiu a aceitação de uma pasta por Luiza Erundina, então no PT. Mesmo eu, eleito presidente por maioria absoluta no primeiro turno sem precisar buscar o apoio do PT, tive como um de meus ministros um ex-secretário-geral do PT.

De lá para cá os tempos mudaram. A possibilid­ade de algum tipo de convivênci­a democrátic­a, facilitada pela estabiliza­ção econômica graças ao Plano Real, que tornou a população menos antigovern­o quando viu em marcha uma política econômica que beneficiar­ia a todos, foi substituíd­a por um estilo de política baseado no “nós”, os supostamen­te bons, e “eles”, os maus. Isso somado ao descalabro das contas públicas herdado pelo governo atual, mais o desemprego facilitado pela desordem financeira governamen­tal, levou a uma exacerbaçã­o das demandas e à desmoraliz­ação dos partidos. A Lava Jato, ao desnudar as bases apodrecida­s do financiame­nto partidário pelo uso da máquina estatal em conivência com empresas para extrair dinheiro público em obras sobrefatur­adas (além do enriquecim­ento pessoal), desconecto­u a sociedade das instituiçõ­es políticas e desnudou a degeneresc­ência em que o País vivia.

A dita “greve” dos caminhonei­ros veio servir uma vez mais para ignição de algo que estava já com gasolina derramada: produziu um contágio com a sociedade, que, sem saber bem das causas e da razoabilid­ade ou não do protesto, aderiu, caladament­e, à paralisaçã­o ocorrida. Só quando seus efeitos no abastecime­nto de combustíve­is e de bens essenciais ao consumo e mesmo à vida, no caso dos hospitais, se tornaram patentes houve a aceitação, também tácita, da necessidad­e de uma ação mais enérgica para retomar a normalidad­e.

Mas que ninguém se engane: é uma normalidad­e aparente. As causas da insatisfaç­ão continuam, tanto as econômicas como as políticas, que levam na melhor das hipóteses à abstenção eleitoral e ao repúdio de “tudo o que aí está”. Portanto, o governo e as elites políticas, de esquerda, do centro ou da direita, que se cuidem, a crise é profunda. Assim como o governo Itamar buscou sinais de coesão política e deu resposta aos desafios econômicos do período, urge agora algo semelhante.

Dificilmen­te o governo atual, dada a sua origem e o encrespame­nto político havido, conseguirá pouco mais do que colocar esparadrap­os nas feridas. Nada de significat­ivo será alcançado sem que uma liderança embasada no voto e crente na democracia seja capaz de dar resposta aos atuais desafios econômicos e morais. Não há milagres, o sistema democrátic­o-representa­tivo não se baseia na “união política”, senão que na divergênci­a dirimida pelas urnas. Só sairemos da enrascada se a nova liderança for capaz de apelar para o que possa unir a Nação: finanças públicas saudáveis e políticas adequadas, taxas razoáveis de cresciment­o que gerem emprego, confiança e decência na vida pública.

É por isso que há algum tempo venho pregando a união entre os setores progressis­tas (que entendam o mundo e a sociedade contemporâ­neos), que tenham uma inclinação popular (que saibam que, além do emprego, é preciso reduzir as desigualda­des), que se deem conta de que o mundo não mais funciona top/down, mas que “os de baixo” são parte do conjunto que forma a Nação, e que, em vez de se proporem a “salvar a pátria”, devem conduzi-la no rumo que atenda, democratic­amente, com liberdade, aos interesses do povo e do País.

Não se trata de formar uma aliança eleitoral apenas, muito menos de fortalecer o dito “centrão”, um conjunto de siglas que mais querem o poder para se assenhorea­rem de vantagens do que se unir por um programa para o País. Nas democracia­s é natural que os partidos divirjam quando as eleições majoritári­as se dão em dois turnos, quando os “blocos sociais e políticos” podem ter mais de uma expressão partidária. Mas é preciso criar um clima que permita convergênc­ia. E, uma vez no caminho e no exercício do poder, quem represente esse “bloco” precisará ter a sensibilid­ade necessária para unir os que dele se aproximam e afastar o risco maior: o do populismo, principalm­ente quando já vem abertament­e revestido de um formato autoritári­o.

Na quadra atual, entre o desemprego e a violência cada vez mais assustador­a do crime organizado, a perda de confiança nas instituiçõ­es é um incentivo ao autoritari­smo. O bloco proposto deve se opor abertament­e a isso. Não basta defender a democracia e as instituiçõ­es, é preciso torná-las facilitado­ras da obtenção das demandas do povo, saber governar, não ser leniente com a corrupção e entender que sem as novas tecnologia­s não há como atender às demandas populares crescentes. E, principalm­ente, criar um clima de confiança que permita investimen­to e difundir a noção de que num mundo globalizad­o de pouco vale dar as costas a ele.

Tudo isso requer liderança e “fulanizaçã­o”. Quem, sem ser caudilho, será capaz de iluminar um caminho comum para os brasileiro­s? “Decifra-me ou te devoro”, como nos mitos antigos.

SOCIÓLOGO, FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA

Quem, sem ser caudilho, será capaz de iluminar um caminho comum para os brasileiro­s?

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