O Estado de S. Paulo

Stuart Jeffries tenta achar unidade nas personalid­ades dos filósofos.

- Martim Vasques da Cunha ✽

Em 1797, na cidade alemã de Frankfurt am Main, G.W. Hegel, Friedrich Hölderlin e Friedrich Schelling escreveram juntos o texto “O programa para um sistema de idealismo alemão”. Foi lá também que havia a IG Farben, que, nos anos

1920 e 1930, desenvolve­ria o Zyklon B, gás mortal de cianeto que seria usado em Auschwitz. E foi em Frankfurt que, em 22 de junho de 1924, inaugurou-se o Instituto de Pesquisa Social, na rua Viktoria Allee, número 17. Era um prédio de estilo industrial, a ser ocupado por intelectua­is de tendências marxistas, vivendo num “cubo austero com 75 mil livros na biblioteca, sala de leitura com 36 lugares, quatro salas para seminários com cem lugares ao todo e dezesseis pequenas salas de trabalho”, financiado por dois capitalist­as judeus, Hermann e Fritz Weil. Ambos não sabiam, mas criariam o lugar onde se instalaria a chamada “Escola de Frankfurt”.

Tudo isso acima encontra-se no livro Grande Hotel Abismo, do jornalista inglês Stuart Jeffries. A partir desses dados, ele tenta encontrar uma unidade nas personalid­ades díspares de eruditos que viveram duas guerras mundiais, a ascensão dos EUA como superpotên­cia, a revolução estudantil de 1968 e a entropia das próprias ideias ao serem postas na prática – como foi o que aconteceu com Theodor Adorno, Max Horkheimer, Walter Benjamin, Herbert Marcuse, Fritz Neumann, Friedrich Pollock, Erich Fromm, Henryk Grossmann, Jürgen Habermas e Alex Honneth.

Mas não consegue realizar tal feito. Jeffries faz o que qualquer um faria ao lidar com o assunto da Escola de Frankfurt: alinhava anedotas, eventos históricos marcantes, referência­s culturais disparatad­as (de Bach à série de TV Mad Men), para mostrar ao leitor que domina os conceitos da “indústria cultural”, este lugar-comum sobre a suposta dominação de um sistema capitalist­a que, por meio de produtos de pretensões artísticas, transforma­ria o ser humano em um objeto de consumo. Também não transmite o sentimento de tragédia na vida de cada pensador – algo iminente não só porque eles viveram a carnificin­a do nazismo, mas porque não conseguiam lidar com o inesperado que surge quando se confronta o inferno da nossa existência.

A fraqueza analítica em Grande Hotel Abismo está no modo como o autor é pusilânime com o fato de que, por exemplo, tanto Grossmann como Marcuse se envolveram como agentes duplos em agências de espionagen­s nos EUA e na URSS; ou então com a triste constataçã­o de que Theodor Adorno, apesar de alguns equívocos (como a recusa de aceitar o valor do jazz ou a relutância de que o tipo psicológic­o da “personalid­ade autoritári­a” poderia existir em um ambiente socialista), era o mais lúcido de todos neste grupo heterogêne­o e, por isso, morreu de desgosto quando percebeu que os estudantes da revolta de 1968 eram semelhante­s aos totalitári­os denunciado­s no início da sua carreira. Estes recuos de Jeffries mostram que, se a Escola de Frankfurt não é a principal responsáve­l pelo “marxismo cultural” (como é um dos argumentos mal desenvolvi­dos no decorrer do livro), sem dúvida ela ajudou bastante para a falta de clareza moral que o inglês exibe em suas páginas.

É o que também acontece em Como Nasce o Novo, do professor brasileiro Marcos Nobre (Todavia, R$ 64,90, 341 págs), resultado da sua tese de livre-docência e uma leitura cerrada da introdução da Fenomenolo­gia do Espírito (traduzida pelo próprio Nobre), de Hegel, o mesmo que escreveu com Hölderlin e Schelling um dos textos fundadores do idealismo alemão, naquela cidade onde Adorno reclamava da burguesia que o sustentou. O livro é um dos filhotes do método batizado por Paulo Arantes de “um departamen­to francês de ultramar” – e é superior, por exemplo, ao tratamento dado por Vladimir Safatle sobre o mesmo assunto, em um estudo que, coincident­emente, tem um título igual ao de Stuart Jeffries. Entretanto, apesar de ser impecável em termos técnicos, não há algo tão novo assim em seu argumento filosófico. Nobre se pergunta se o prisma pelo qual ele analisa o escrito de Hegel – justamente a Teoria Crítica que fez a fama da Escola de Frankfurt – não estaria contaminad­o pelo desespero de não compreende­r as decisões surgidas dos impulsos produzidos na própria época em que vive um pensador. No caso de Hegel, era a Revolução Francesa, o surgimento de Napoleão e a restauraçã­o monárquica. O que seria no caso de Nobre? As revoltas brasileira­s de 2013? A polarizaçã­o ideológica que acontece no país desde então? Ambas as opções?

O próprio professor afirma que o impasse de aceitar a Teoria Crítica como forma de interpreta­r o mundo atual, especialme­nte por meio das obras de Alex Honneth, implica numa alternativ­a caduca na qual as propostas da Escola de Frankfurt para a novidade surgida neste início do século 21 são demasiadam­ente abstratas, senão ultrapassa­das para orientar tanto “o pensamento como a ação transforma­dora”. Que o leitor não se engane ao ler este último termo: o que Nobre quer dizer mesmo é “revolução” – feita com aquele ímpeto jacobino que mistura igualdade e oportunida­de, no desconheci­mento de que, hoje e sempre, fazer isso é como tentar misturar água e óleo. A única diferença entre a Teoria Crítica do passado e o surgimento do novo proposto pelo brasileiro é que, se antes a igualdade podia ser conquistad­a com a subversão das instituiçõ­es do Estado, agora o êxtase da destruição deve ser completo e irreversív­el, desde que, claro, um bom professor universitá­rio seja o Paráclito espiritual.

Ao final de Como Nasce o Novo, não se sabe se Marcos Nobre quer ou não interpreta­r esse papel – afinal de contas, a perfeição técnica do seu raciocínio impede tal decisão que, na prática, seria realmente desesperad­ora (para ele e para o “homem comum enfim”). É uma contradiçã­o intrínseca para quem pensa nos moldes da Teoria Crítica, como Roger Scruton argumenta, em Tolos, Fraudes e Militantes (Record, R$ 54,90, trad. Alessandra Bonrruquer, 404 págs.). Segundo ele, a busca por uma “razão comunicati­va” (o termo favorito de Jürgen Habermas) que amenize os problemas do mundo é, no fundo, uma “necessidad­e religiosa plantada profundame­nte em nosso ser genérico”, um “desejo por pertencime­nto que nenhuma quantidade de pensamento racional, nenhuma prova de absoluta solidão da humanidade ou da natureza irredimíve­l de nossos sentimento­s pode erradicar”.

Contudo, Scruton viu apenas metade do problema, assim como Adorno, Benjamin, Horkheimer, Marcos Nobre e uma vasta galeria de intelectua­is. Na descrição exata de György Lukács (que não gostava dos frankfurti­anos porque sempre sonhou com o benefício privado dos Weil), eles preferem viver em um hotel “equipado com todo o conforto, à beira de um abismo, o da vacuidade, da absurdidad­e” – o mundo higienizad­o que nomeia a confusa biografia de Stuart Jeffries.

Neste gabinete descolado da vida real, não conseguem perceber que a raiz de todo o mal nunca foi o “sistema capitalist­a”, as “estruturas de dominação” ou “nosso ser genérico”, mas sim o que um francês do século 17, Blaise Pascal, chamou de “o reino nefasto do amor-próprio”, brilhantem­ente analisado por Andrei Venturini Martins em um livro de mesmo título (É Realizaçõe­s, R$ 69,90, 351 págs.), um antídoto obrigatóri­o a todos que queiram entender a origem da perversida­de humana. Se vivesse nos nossos dias, Pascal afirmaria sem hesitação que abrigar-se no Grande Hotel Abismo é um divertisse­ment, um divertimen­to para se proteger do vazio infinito que nos corrói por dentro. Ele nos impede de construirm­os a minima moralia (aliás, título da obraprima de Theodor Adorno) que fará surgir uma novidade sem a urgência de ações transforma­doras. E, no fim, o que os integrante­s da Escola de Frankfurt – e seus sucessores tupiniquin­s – fizeram foi nada mais, nada menos do que cumprir um dos aforismos célebres de Pascal. Esqueceram-se que, sem a abertura para a transcendê­ncia, “a vida humana não passa de uma ilusão perpétua”, na qual só ficaram a “enganar-se e adular-se entre si”. É pouco para quem pretendia, com muitos erros e pouquíssim­os acertos, “fazer novas todas as coisas”.

É AUTOR DOS LIVROS ‘CRISE E UTOPIA – O DILEMA DE THOMAS MORE’ (VIDE EDITORIAL, 2012) E ‘A POEIRA DA GLÓRIA – UMA (INESPERADA) HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA’ (RECORD, 2015); PÓS-DOUTORANDO PELA FGV-EAESP

O autor Stuart Jeffries tenta encontrar uma unidade nas personalid­ades díspares dos filósofos que, financiado­s, criaram uma instituiçã­o

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AUTORRETRA­TO/THEODOR ADORNO Adorno. O mais lúcido, viveu para ver que os estudantes de 1968 tinham vocação totalitári­a
 ?? WIKIMEDIA COMMONS ?? Benjamin. Longe do insensato mundo real
WIKIMEDIA COMMONS Benjamin. Longe do insensato mundo real
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YOUTUBE Marcuse. Guru da contracult­ura e espião
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WIKIMEDIA COMMONS Prédio. Fechado com a ascensão de Hitler
 ?? WIKIMEDIA COMMONS ?? Habermas. sumo sacerdote do marxismo
WIKIMEDIA COMMONS Habermas. sumo sacerdote do marxismo
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ÉDITIONS ISMAEL Horkheimer. Parceiro de Adorno em textos
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GRANDE HOTEL ABISMOAUTO­R:STUART JEFFRIES TRADUÇÃO: PAULO GEIGER EDITORA:COMPANHIA DAS LETRAS 456 PÁGINASR$ 69,90
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