O Estado de S. Paulo

Contra a aventura autoritári­a

- •✽ SERGIO FAUSTO

Oespectro da desordem deixou-se entrever nas últimas semanas. Com a greve dos caminhonei­ros cresceu o medo de eventual colapso da ordem pública, sentimento instrument­alizado pelos que clamam por “intervençã­o militar já”.

Historicam­ente a direita preferiu a ordem à liberdade, quando julgou aquela ameaçada. Foi assim em 1964. O movimento que pôs fim ao período democrátic­o iniciado em 1945 não foi uma revolução, como querem seus adeptos. Tampouco uma quartelada. Contou com apoio civil relativame­nte amplo e se assentou num projeto de poder voltado para a modernizaç­ão conservado­ra do País.

Hoje parte da direita aposta na candidatur­a de Jair Bolsonaro. Corre o sério risco, se vitoriosa, de perder a liberdade sem obter a ordem. O ex-capitão é antes parte do problema que da solução para um país que clama pelo restabelec­imento da autoridade pública. Representa o autoritari­smo em estado primitivo, ao estilo “tiro, porrada e bomba”. É uma criatura pré-política, incapaz de compreende­r os requisitos mínimos para a estabilida­de da ordem pública numa sociedade complexa e desigual como a brasileira.

O Brasil e o mundo de hoje não são os mesmos do início da década de 1960. O poder difundiu-se, descentral­izou-se, democratiz­ou-se. Reconcentr­álo em moldes autoritári­os, supondo que assim se restabelec­eria uma ordem política e moral estável e conservado­ra, é pesadelo de uma noite de verão. Subir nessa canoa é embarcar numa aventura.

Bolsonaro não é Humberto de Alencar Castelo Branco. A diferença de patente na hierarquia militar não é a única que marca a imensa distância entre o ex-capitão e o falecido marechal.

Castelo Branco era membro da elite miliar que emergiu no pós-guerra. Tinha trânsito e prestígio no establishm­ent americano, na alta oficialida­de das Forças Armadas brasileira­s e conexões com a elite empresaria­l e burocrátic­a do País. Bolsonaro é um deputado apagado, com produção legislativ­a pífia, mais conhecido por sua indiscipli­na quando militar da ativa e pelo raciocínio raso quando solicitado a falar sobre políticas e propostas de governo. No exterior é visto como uma figura folclórica, na melhor das hipóteses.

Preocupado em inibir o surgimento de caudilhos militares, fonte de instabilid­ade política na América hispânica, Castelo Branco acabou com a posição de marechal e marechal do ar na hierarquia militar e fixou tempo máximo de 12 anos para permanênci­a no generalato. Bolsonaro quer restabelec­er a ordem social entregando armas, até fuzis, à população... Deve ter-se inspirado em Chávez, caudilho militar venezuelan­o que armou os que, a seu ver, eram os homens e mulheres de bem da Venezuela.

Castelo Branco entronizou uma equipe econômica de alta qualificaç­ão técnica: Otávio de Bulhões, Roberto Campos, Mario Henrique Simonsen. Liberais todos, os dois primeiros com larga trajetória prévia no alto escalão do Estado. Bolsonaro arrumou um economista ultraliber­al, craque em formulaçõe­s abstratas, sem nenhuma experiênci­a de governo. A dupla Campos-Bulhões era parte orgânica do grupo castelista. Paulo Guedes é um enfeite útil à candidatur­a de Bolsonaro.

O Programa de Ação Econômica do Governo Castelo Branco (Paeg) resultou de longo amadurecim­ento dentro do núcleo econômico do grupo castelista. Reformas econômicas foram feitas sob o tacão da ditadura.

Bolsonaro já declarou “não entender porra nenhuma de economia”. Quando se pronunciav­a sobre a matéria, defendeu fuzilar o então presidente Fernando Henrique por privatizar a Vale do Rio Doce. Guedes vê Bolsonaro como instrument­o a proporcion­ar-lhe a realização do sonho juvenil de ser o czar da economia para “privatizar tudo”. Essa bizarra aliança, se bem-sucedida, estouraria como bolha de sabão ao primeiro choque com a realidade política brasileira. Ninguém fará reformas liberais no Brasil “na marra”, felizmente. Ditadura nunca mais.

O restabelec­imento da autoridade política no Brasil é fundamenta­l. O Estado democrátic­o depende em última instância de a sociedade aceitar como legítimos os termos de troca entre o que entrega em tributos e o que recebe em serviços, bem como entre o que entrega em obediência às leis e o que recebe em segurança de que seus direitos serão garantidos pelo poder estatal.

É crescente a percepção de que há uma desproporç­ão nesses termos de troca, agravada pela má distribuiç­ão social da carga tributária e do gasto público e pelo desequilíb­rio na imposição de lei ao cidadão comum e aos “poderosos”. A Lava Jato vem corrigindo esse desequilíb­rio, mas com um efeito colateral negativo: a disseminaç­ão de visões radicalmen­te depreciati­vas sobre o Brasil e sobre a política.

Mexer nos termos da equação de que depende a legitimida­de da autoridade pública democrátic­a exigirá muito engenho e arte, pois as condições não são favoráveis. A sociedade odeia a política quando mais dela precisa. Embala quem quer rasgar de vez o desgastado pacto social da redemocrat­ização, que presidiu os últimos 30 anos da vida brasileira, quando mais necessário é quem saiba renová-lo reconhecen­do os novos padrões de legitimida­de exigidos pelas transforma­ções econômicas, políticas e sociais desse período, no Brasil e no mundo.

É tarefa para várias mãos e várias vozes, mas que requer liderança política. Democrátic­a, nos métodos, nas palavras, nas atitudes, na condução de um processo de reforma cujo âmago diz respeito à equidade do pacto fiscal-tributário, à aplicação igualitári­a da lei, à eficiência na prestação dos serviços públicos, à honestidad­e pessoal e à transparên­cia republican­a na gestão da coisa pública.

Não é hora de lamentar a falta de “grandes políticos” ou de aderir ao exercício estéril de “falar mal do Brasil”. Não temos outro país para chamar de nosso. Chegou o momento de construir um pacto pela ordem democrátic­a para conter o risco da aventura autoritári­a.

Chegou o momento de construir um pacto pela ordem democrátic­a para conter esse risco

SUPERINTEN­DENTE EXECUTIVO DA FUNDAÇÃO FHC, COLABORADO­R DO LATIN AMERICAN PROGRAM DO BAKER INSTITUTE OF PUBLIC POLICY DA RICE UNIVERSITY, É MEMBRO DO GACINT-USP

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