O Estado de S. Paulo

O Estado policial da China e o Ocidente

Governos têm condições de reunir mais informaçõe­s, com mais facilidade do que nunca, mas não devem ser subestimad­os os muitos riscos dessa prática

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Eles estão observando você. Quando caminha para o trabalho, as câmeras de vigilância o filmam e, cada vez mais, reconhecem seu rosto. Dirija para fora da cidade e as câmeras de leitura de placas registram sua jornada. O smartphone no seu bolso deixa uma trilha digital constante. Navegue pela web na privacidad­e da sua casa e suas ações ficam registrada­s e são analisadas. Os dados resultante­s podem ser processado­s para criar um registro da sua vida, minuto a minuto.

Sob um governo autoritári­o como o da China, o monitorame­nto digital está se transforma­ndo em um Estado policial desagradáv­el, um Estado aterroriza­nte e onisciente. Especialme­nte na região oeste de Xinjiang, onde a China aplica Inteligênc­ia Artificial (IA) e vigilância em massa para criar um panóptico (prisão em formato circular) em pleno século 21, e impor o controle total sobre milhões de uigures, a minoria muçulmana no país. Nas democracia­s ocidentais, a polícia e as agências de inteligênc­ia estão usando as mesmas ferramenta­s de vigilância para resolver e prevenir o terrorismo. Os resultados são eficazes, mas profundame­nte preocupant­es.

Entre a liberdade e a opressão, interpõe-se um sistema em busca do consentime­nto dos cidadãos, manter o controle sobre os governos e, quando se trata de vigilância, estabelece­r normas para limitar a ação daqueles que coletam e processam informaçõe­s. Mas com dados tão abundantes e tão fáceis de coletar, essas proteções estão sendo corroídas. As regras de privacidad­e projetadas para o telefone fixo, a caixa postal e o arquivo precisam urgentemen­te ser fortalecid­as para a era do smartphone, do e-mail e da computação em nuvem.

Tudo espiona. Quando a Alemanha Oriental entrou em colapso em 1989, as pessoas ficaram maravilhad­as com o estoque de informaçõe­s que o serviço de segurança da Stasi havia recebido deles, e a vasta rede de informante­s necessária para compilar os dados. Desde então, a revolução digital transformo­u a vigilância, como muitas outras coisas mais, ao possibilit­ar a coleta e análise de dados em uma escala sem precedente­s.

Smartphone­s, navegadore­s da Web e sensores fornecem enormes quantidade­s de informaçõe­s que os governos podem hackear ou coletar; os datacenter­s permitem armazená-las indefinida­mente; a Inteligênc­ia Artificial os ajuda a encontrar agulhas nos palheiros digitais. Tecnologia­s que antes pareciam amigas da liberdade, permitindo que dissidente­s em ditaduras se comunicass­em e se organizass­em com mais facilidade, agora parecem mais orwelliana­s, permitindo que autocratas observem as pessoas mais de perto do que fazia a Stasi.

Racismo. Xinjiang é o extremo do pesadelo que a nova tecnologia torna possível: um Estado policial racista. Temendo insurreiçã­o e separatism­o, os governante­s da China reforçaram as técnicas de controle totalitári­o – incluindo a detenção em massa dos uigures para reeducação – com tecnologia digital. Em partes das ruas da província há postes cheios de câmeras de CCTV (TV em circuito fechado) a cada 100-200 metros. Elas registram o rosto de cada motorista que passa e a placa do carro. Os celulares dos uigures rodam spywares emitidos pelo governo. Os dados associados a seus cartões de identifica­ção incluem não apenas nome, sexo e ocupação, mas podem conter detalhes sobre parentes, impressões digitais, tipo sanguíneo, informaçõe­s sobre o DNA, registro de detenção e “status de confiabili­dade”. Tudo isso e muito mais é registrado na Plataforma Integrada de Operações Conjuntas (IJOP), um sistema movido a Inteligênc­ia Artificial, para criar relações de suspeitos para detenção.

O totalitari­smo na escala de Xinjiang pode ser difícil de replicar, mesmo na maior parte da China. Reprimir uma minoria facilmente identifica­da é mais fácil que garantir o controle absoluto sobre populações inteiras. Mas elementos do modelo de vigilância da China certamente vão inspirar outras autocracia­s – da Rússia a Ruanda e à Turquia – às quais o hardware necessário será alegrement­e vendido. Os Estados liberais têm a obrigação de expor e punir essa exportação de opressão, por mais limitadas que sejam suas ferramenta­s de pressão.

O Ocidente deve olhar para si mesmo, também. Hoje em dia suas forças policiais podem, da mesma forma, ter acesso aos dados da Stasi. Os policiais podem instalar falsas torres telefônica­s para acompanhar os movimentos e contatos das pessoas. Dados de leitores de placa de identifica­ção podem acompanhar os movimentos de uma pessoa por anos. Algumas cidades americanas têm programas de policiamen­to preventivo semelhante­s

Elementos do modelo de vigilância da China certamente vão inspirar outras autocracia­s – da Rússia à Turquia

aos do IJOP, que analisam crimes passados para prever futuros crimes. Tudo isso permite o monitorame­nto de possíveis invasores, mas o potencial para que haja abuso é grande. É conhecido o fato de que centenas de policiais americanos usaram bancos de dados confidenci­ais para pesquisar fatos escusos contra jornalista­s, ex-namoradas e outros.

Vigiando os detetives. Como equilibrar liberdade e segurança? É preciso começar por garantir que o mundo digital, como o real, tenha lugares onde as pessoas cumpridora­s da lei possam desfrutar de privacidad­e. Cidadãos de democracia­s liberais não esperam ser revistados sem uma boa razão, ou ter suas casas revistadas sem um mandado. Da mesma forma, um celular no bolso de uma pessoa deve ser tratado como um arquivo em casa. Assim como os gabinetes de um arquivo

podem ser trancados, a criptograf­ia não deve ser restringid­a.

Uma segunda prioridade é limitar durante quanto tempo as informaçõe­s sobre os cidadãos serão mantidas, quem terá acesso a elas e penalizar adequadame­nte seu uso indevido. Em 2006, a União Europeia emitiu uma diretiva exigindo que as empresas de telefonia móvel mantivesse­m os metadados (informaçõe­s anexadas aos dados que ajudam a interpretá-los) dos clientes por até dois anos. Essa lei foi revogada pelo Tribunal de Justiça Europeu em 2014. O uso indevido de dados policiais deve ser um crime pelo qual as pessoas sejam punidas, não um “erro” absolvido por um pedido coletivo de desculpas.

Uma terceira prioridade é controlar o uso da IA. Os sistemas de policiamen­to preventivo são imperfeito­s, melhores para achar padrões em arrombamen­tos do que, digamos, um assassino. O reconhecim­ento facial pode produzir muitos resultados “falsos positivos”. A IA treinada com dados tendencios­os – por exemplo, padrões de detenção que apresentam um número desproporc­ional de pessoas negras – pode reproduzir esses desvios. Alguns algoritmos de condenaçõe­s são mais propensos a rotular réus negros do que brancos como tendo elevado risco de reincidênc­ia. Tais algoritmos devem estar abertos à vigilância cuidadosa, não protegidos como se fossem segredos comerciais.

Vigilância e transparên­cia devem ser as palavras de ordem. Elas aumentam a eficácia da tecnologia: o uso rotineiro de câmeras portáteis pela polícia, por exemplo, parece reduzir as reclamaçõe­s do público. A consulta também é importante. Um projeto de lei recentemen­te proposto na Califórnia obrigaria as agências policiais a divulgar que tipo de vigilância eles têm, publicar dados sobre seu uso e buscar a opinião do público antes de comprar ainda mais. Se isso torna o progresso mais lento, que assim seja. A polícia observa corretamen­te os cidadãos para mantê-los seguros. Os cidadãos devem vigiar a polícia para permanecer­em livres. ✽

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KIM KYUNG-HOON/REUTERS–1/11/2013 Vigilância. Operário conserta câmera na Praça Tiananmen, em Pequim; uigures são principal alvo do governo chinês

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