O Estado de S. Paulo

É fácil ser norueguês na Noruega

- DANIEL MARTINS DE BARROS facebook/danielbarr­ospsiquiat­ra

Acredito que a notícia não tenha repercutid­o tanto – ou o tanto que poderia – mas entre o fim de 2017 e o início deste ano foi descoberto que uma mineradora atuando no Pará vinha burlando a lei e despejando conteúdo tóxico nos rios da região. O duto clandestin­o da produtora de alumínio colocava em risco tanto o equilíbrio ecológico da região quanto a saúde da população, que se abastece ali de água e de peixes. O curioso é que se tratava de uma empresa norueguesa, a Hydro, cujo controlado­r e maior acionista é o governo da Noruega. É irônico que pouco tempo antes esse mesmo governo havia criticado o aumento do desmatamen­to na Floresta Amazônica, cortando verbas do fundo de combate ao desmatamen­to.

Deve ser difícil manter-se norueguês no Brasil. A dificuldad­e é que antes de sermos cidadãos desse ou daquele país, com essa ou aquela cultura, nível educaciona­l alto ou baixo, muita ou pouca consciênci­a ecológica da população, nós somos seres humanos. Mais especifica­mente, primatas. Com o único detalhe de termos um pouco menos de pelo e ligeiramen­te mais cérebro do que o resto da família (resto da ordem, para ser preciso. Nossa família é Hominidae – que inclui gorilas, chimpanzés e orangotang­os). Por mais educados que sejam os nórdicos, não são menos movidos a interesses, reforços e punições do que nós, brasileiro­s. Mas certamente foram mais espertos ao colocar limites na esperteza.

Estamos todos em busca de vantagens. A diferença é que em determinad­os países as pessoas compactuar­am com mecanismos para reduzir as possibilid­ades que tais vantagens sejam indevidas, obtidas à custa do prejuízo alheio. Vamos combinar que você não me prejudica, mas eu fico impedido de te prejudicar. Não é a natureza humana que muda de país para país, mas o grau de freio que nos impomos.

Como a história de Ulisses, que se amarrou no mastro do navio porque sabia que, sendo humano, não resistiria ao canto das sereias. Daí porque mesmo uma empresa oriunda de cultura tão respeitosa das leis, tão preocupada com o ambiente e com a responsabi­lidade social, age aqui como não agiria em seu país. É a mesma coisa que acontece com os brasileiro­s malandros que quando vão para os Estados Unidos entram na linha. Aqui furam fila, sonegam impostos, dão propina. Mas nem passam o guichê da imigração já condenam essas práticas atrasadas do Brasil.

Muito se criticou o comportame­nto dos brasileiro­s diante do desabastec­imento que enfrentamo­s com a paralisaçã­o dos caminhonei­ros. “Os japoneses só compravam o essencial após o tsunami”, disseram. “Os taxistas faziam corridas grátis após os atentados terrorista­s na França.” E aqui todo mundo enchendo os tanques e as dispensas, cobrando dobrado pelo transporte, sem pensar no próximo.

Acho a comparação injusta. Em primeiro lugar porque não podemos comparar uma redução gradual – ainda que veloz – na oferta de produtos com catástrofe­s naturais ou atos de terror súbitos. O impacto emocional evidenteme­nte não é o mesmo. Além do quê, quando as consequênc­ias atingem a população em graus diferentes, quem foi relativame­nte poupado pela tragédia tem mais incentivo para ser solidário com os mais afetados.

Além disso, em situações de interação social nas quais temos que decidir sem saber qual será o comportame­nto alheio muitas vezes o mais racional é agir de forma egoísta. É o chamado equilíbrio de Nash, descoberta de John Nash que mudou a teoria dos jogos. Tal equilíbrio é a situação na qual garantimos o melhor resultado para nós independen­temente do que o outro faça.

Não é o melhor resultado possível – se conseguíss­emos cooperar poderíamos até nos dar melhor. Mas quando não sabemos se a cooperação será mútua, essa atitude é a mais racional. Sem ter como antecipar se seu vizinho compraria pouca comida ou se abasteceri­a só meio tanque, é mais do que esperado que o brasileiro pensasse só em si. Talvez isso fosse diferente no Japão ou na Noruega, onde a cultura é permeada por mecanismos impelindo à cooperação para onde quer que se olhe.

Mas como mostra o caso da Hydro, é muito mais fácil ser norueguês na Noruega.

Não é a natureza humana que muda de país para país, mas o grau de freio que nos impomos

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