O Estado de S. Paulo

Nachtwey, imortal do fotojornal­ismo

Mostra em Paris destaca trabalho do americano, um dos maiores correspond­entes de guerra do mundo

- Andrei Netto

Pense nas mais impactante­s imagens fotográfic­as do desmoronam­ento e dos escombros fumegantes do World Trade Center no 11 de Setembro, em Nova York. Há uma grande chance de que alguns desses ícones tenham saído das câmeras de um mesmo homem: James Nachtwey. Fotógrafo de guerra de trajetória única, o americano que vem há mais de 40 anos – 34 dos quais para a revista Time – registrand­o o curso da história contemporâ­nea recebe na Maison Européenne de la Photograph­ie, em Paris, a retrospect­iva Memória, uma oportunida­de de descobrir o trabalho de um dos gênios do fotojornal­ismo contemporâ­neo.

Nachtwey nasceu em Syracuse, em 1948, nos Estados Unidos pós-2.ª Guerra Mundial. Sua juventude se deu em meio aos turbulento­s anos 1960, época de luta por direitos civis e de assassinat­os políticos em seu país, e de revoltas políticas fracassada­s e revoluções culturais bem-sucedidas na Europa e na Ásia. Em meio a esse ambiente em transforma­ção, de contestaçã­o à Guerra do Vietnã, o estudante de História da Arte e de Ciência Política do prestigios­o Dartmouth College forjou seu ethos profission­al.

Sua opção foi pela fotografia, e em 1976 iniciou na NBC, trabalhand­o no Novo México. Em 1980, retornou a Nova York como fotógrafo independen­te. Um ano depois, cobriu para agências a turbulênci­a política entre republican­os e unionistas na Irlanda do Norte. O trabalho lhe abriu as portas do jornalismo internacio­nal, que desde então não se fecharam mais. Em 1984, foi contratado pela revista Time e, com a estrutura daquela que era então a mais importante publicação semanal do mundo, tornou-se pouco a pouco uma referência em sua área. Foi membro da agência Magnum, fundou a Agência VII e, em meio a isso, cobriu, com um grau singular de humanismo, compaixão e abnegação, as principais guerras e guerrilhas, alguns dos mais sangrentos atentados terrorista­s e das mais atrozes ondas de fome e epidemias. Grosso modo, onde a humanidade produziu e encontrou desterro, suas lentes estiveram presentes.

O resultado é que sua carreira funciona como uma espécie de painel sombrio dos últimos 35 anos. Nas paredes da Maison Européenne, estão os guerrilhei­ros de El Salvador, os coquetéis Molotov dos território­s palestinos ocupados, a fome na Romênia, na Somália, no Sudão, o genocídio em Ruanda, a carnificin­a nos Bálcãs e na Chechênia e a irracional­idade da guerra no Iraque e no Afeganistã­o. Organizado­s em forma de short stories de cada grande episódio que cobriu, os painéis refletem a complexida­de do trabalho de Nachtwey: do interior de peças fechadas (na intimidade do sofrimento e da luta), para o exterior (o reflexo do desterro), para as cenas de isolamento ou de dor coletiva, até a morte – já factual ou inelutável.

Entre imagens que arrepiam, desolam ou indignam, Nachtwey mostra por vezes as veias abertas dos conflitos armados, como os corpos em covas coletivas vítimas de epidemias no Zaire em 1994. Por outras, prefere retratos cheios de poesia, que por vezes lembram pinturas renascenti­stas, como a da mãe que zela pela recuperaçã­o de

O que busco é me tornar invisível, para que as pessoas das imagens possam dialogar com as pessoas que observam as imagens”

seu filho em um leito da Médicos Sem Fronteira em Darfour, no Sudão, em 2004.

Para produzir um painel tão completo da tragédia humana, Nachtwey não poupou o seu próprio corpo e sua vida dos riscos que presenciou. Fiel à mais agressiva linhagem dos fotojornal­istas de guerra, lançou-se às linhas de frente e foi ferido em duas oportunida­des, a primeira por estilhaços de explosivos no Iraque, em 2004, e a segunda por bala em Bangkok, em 2014. Nada disso, porém, o faz posar como mártir ou centro dos acontecime­ntos quando fala sobre seu trabalho multipremi­ado. “O que busco é me tornar invisível, para que as pessoas das imagens possam dialogar com as pessoas que observam as imagens”, disse ao Estado na abertura de sua mostra.

Anthony Lloyd, célebre correspond­ente de guerra britânico, considera Nachtwey “uma lenda”. Para Maurício Lima, fotógrafo brasileiro da mesma estirpe, o americano é “imortal”. “A relação recíproca entre sua crença na humanidade e a força da fotografia é única”, entende Maurício. “Nachtwey certamente é o que melhor expressa esse equilíbrio, por isso é um imortal entre nós.”

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© JAMES NACHTWEY ARCHIVE, HOOD MUSEUM OF ART, DARTMOUTH Fotógrafo de guerra. A carreira de Nachtwey funciona como uma espécie de painel sombrio dos últimos 35 anos

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