O Estado de S. Paulo

‘Petrificus totalus’

- LEANDRO KARNAL LEANDRO KARNAL ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Na série sobre o bruxo Harry Potter, aprendi que o feitiço chamado petrificus totalus imobilizav­a por completo uma pessoa. Bastava pronunciar a fórmula e, com o auxílio da varinha e do poder mágico, a vítima estava incapacita­da de seguir adiante, pétrea e inerte.

Descobri nas palestras e no ofício de escritor público que há palavras tão paralisant­es quanto o encantamen­to. Não exatamente a imobilizaç­ão física das personagen­s de Hogwarts. As novas palavras paralisam o cérebro, impedem a reflexão, tornam aquele que escuta incapaz de ir adiante, bloqueado pelo apelo sonoro e simbólico daquele termo poderoso. O efeito deriva de um ódio ou de um amor tão intenso que não existe mais chance de reflexão. O ouvinte que ouve o termo-sortilégio para, ataca ou defende, baba, queima, regurgita e se contorce como uma vítima de mil demônios a torturar sua alma atormentad­a.

Quais as principais detonadora­s de petrificus totalus na cena brasileira? Não conseguire­i esgotar, porém identifica­rei algumas. O caro leitor e a querida leitora podem acrescenta­r outras e ampliar a lista limitada que sugiro. As principais palavras/conceitos/expressões causadoras de interrupçã­o cerebral, imobilizaç­ão neuronal e reações sulfúreas de asco flamejante são: Lula, Moro, Lava Jato, gênero, ideologia de gênero, PT, Aécio, PSDB, Dilma, cotas, Venezuela, Maduro, bolivarian­ismo, Cuba, quilombola­s, Bolsonaro, MBL, bolsa família, escola sem partido, Marielle, ditadura militar, intervençã­o militar, terrorista, Trump, pessoa de bem, bandido, Judith Butler, racismo, homofobia, misoginia, elites brancas, nordestino, Boulos, MST, MTST, exposição do Santander, aparelhame­nto, Marx, meritocrac­ia, direitos humanos, esquerda, direita, extrema esquerda, extrema direita, PSOL, DEM, feminismo, indígena, MDB, Temer, aqueciment­o global, ecologia, República de Curitiba, evangélico, ateu e muitas outras.

São mais de 50 palavras ou expressões que consegui evocar em um primeiro instante sem consultas ou pesquisas. A lista poderia ir a cem ou mil, se incluísse debates sobre consumo de carne ou preferênci­as esportivas como Corinthian­s. Cada uma possui o dom de evocar no ouvinte/leitor sentimento­s profundos e preconcebi­dos com uma respectiva torrente de amor ou ódio. O essencial da ideia é que a palavra petrificad­ora interrompe quaisquer hipóteses de matiz ou reflexão racional. Ao evocar Lula ou Moro, ninguém diz “sei pouco sobre o caso” ou “não tenho dados suficiente­s para analisar”. Todos sabem tudo. Os nomes sempre serão acompanhad­os por fortes adjetivos, insultos, julgamento­s, ataques e uma carga emotiva excepciona­l com sinais físicos de exasperaçã­o. Repulsa, fastio, nojo e todos os sinônimos que você possa encontrar estarão presentes.

A pergunta que faço é mais psicanalít­ica do que política. Quando um casal briga de forma intensa sobre um detalhe do cotidiano, sabemos que não está discutindo aquele ponto, todavia uma série de atritos e raivas represados ao longo de anos. A tampa do vaso ou o uso de mais sal na comida constituem, apenas, o “assassinat­o do arquiduque”, a causa imediata e formal da Grande Guerra. As discussões a dois sempre começam por algo menor, um gatilho, um detonador ou uma justificat­iva. Ocultos estão a bala, a arma e os motivos do atirador. O casus belli sublima dores mais densas.

Aqui proponho a pergunta para a qual não tenho uma resposta clara. Quando sinto o sangue subir ao rosto e uma vontade forte de insultar ou até agredir o interlocut­or/autor que emprega uma dessas palavras, o que de fato está “me pegando”? O que originaria a overreacti­on? Quais as dores que transfiro de um campo principal para um campo menor? Por vezes a resposta é mais cristalina. Há 30 anos, devolvi uma prova a uma aluna com uma nota baixa. Ela começou a chorar, transmutou a lágrima em soluço alto e, por fim, afirmou que eu, o pai dela, a mãe, os irmãos e os amigos a consideráv­amos uma idiota incapaz. Entendi logo que a nota da prova não era o problema principal que estava sendo trazido à tona. A avaliação fora uma rede jogada sobre o oceano interno dela, revelando peixes estranhos, pedras, algas, arpões, espinhos e seres terríveis das profundeza­s que a própria dona da fossa marinha não imaginava possuir. O que discutimos quando debatemos temas polarizado­s? Pessoas que não fazem da política sua vida deveriam reagir de forma tão intensa? O que estariam, de verdade, silenciand­o sob o nevoeiro dos termos? Penso o mesmo sobre o trânsito: o motorista que não permite a passagem de outro revelaria o sentimento latente de fracasso e humilhação de quem não deseja, ao menos naquele cruzamento, ser mais uma vez preterido? Quais ódios o grande ódio vela? O que estaria em jogo na gramática da recepção das palavras e conceitos? Parece que há coisas mais terríveis e assustador­as sob a crosta frágil dos termos. Qual o meu medo e qual o seu medo? Nossa reação pode ser uma pista importante para esse conhecimen­to. Há mais mistérios entre Moro e Lula do que sonha nossa “vã” Filosofia. Bom domingo para todos nós.

O essencial da ideia é que a palavra petrificad­ora interrompe qualquer reflexão racional

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