DA PRÓXIMA VEZ, O FOGO: FAHRENHEIT
Nova versão para o cinema do clássico de Ray Bradbury, de 1953, sobre um regime totalitário que declarou guerra aos livros, causa mal-estar pelo tema
Fui informado da morte de Philip Roth enquanto assistia à nova versão de Fahrenheit 451. Simbólica coincidência. Meses antes de morrer, Roth ordenara a destruição de todos os seus papéis pessoais não doados previamente à Biblioteca do Congresso. Imaginei o papelório em chamas, como as que estivera vendo na tela e outras mais ainda veria, pois em Fahrenheit 451 o fogo arde até o fim, queimando livros e outros documentos analógicos.
Imaginei também o testamenteiro do escritor dando uma de Max Brod, testamenteiro de Kafka, poupando da cremação o que lhe fora destinado; mas logo afastei de mim aquela ideia malsã (cabe afinal ao autor estabelecer os limites do seu legado), além do mais, inadequada, já que seria indiscutivelmente maior, em qualidade e quantidade, o prejuízo infligido a Kafka e sua obra. E aí sobreveio outra coincidência: a greve dos caminhoneiros e o desabastecimento dos postos de combustível.
Mesmo quem não viu a refilmagem de Fahrenheit 451 – telefilme da HBO dirigido por Ramin Bahrani – mas ao menos tenha visto a versão anterior, dirigida por François Truffaut em 1966, sabe da crucial importância do querosene na distopia imaginada por Ray Bradbury. É com o querosene jorrando com fartura de suas mangueiras que os bombeiros de Fahrenheit 451, em vez de apagar incêndios, incineram livros. Não vi nenhum romance de Roth ardendo no filme. Kafka, claro, destaca-se nas fogueiras comandadas pelo capitão Beatty (Michael Shannon) e seu pupilo Guy Montag (Michael B. Jordan). Um de seus aforismos sobre felicidade e liberdade serve de epígrafe ao auto de fé bradburyano revisto por Bahrani. Beatty, diga-se, considera Kafka “pornográfico”.
O primeiro livro a crepitar na tela é Enquanto Agonizo, de William Faulkner. Ainda veremos Dostoievski, Borges, Steinbeck, Wilde – até páginas de Harry Potter e Minha Luta, de Hitler – virando cinzas lentamente. Ou, na melhor das hipóteses, reduzidos a emojis holográficos e fragmentados em bilhetes que Beatty extrai da memória – Eliot, Plauto, Hobbes, Joseph de Maistre, Maquiavel – para os queimar em seguida.
O capitão os leu no passado, antes de a América emburrecer-se de vez e render-se ao mais dissoluto obscurantismo: um país em que ler é crime, todos pensam igual, e os livros, esses objetos de papel combustível a 451 graus Fahrenheit de temperatura, que guardam e difundem o saber e provocam múltiplas emoções, passaram a ser demonizados como “venenos” para a mente e desagregadores da harmonia social. Num dos sermões aos seus comandados, o novo Torquemada adverte: “Seus netos nem irão saber o que é um livro.”
As três exceções permitidas – a Bíblia, Moby Dick e Ao Farol, de Virginia Woolf – foram reduzidas a pictogramas eletrônicos, num processo seletivo cujos critérios não nos são dados a conhecer. Assim como não se esclarece quando a América institucionalizou as fogueiras da intolerância. Sabe-se que houve uma segunda Guerra Civil (com 8 milhões de mortos) e dela emergiu uma nação cujos líderes exploraram o déficit de atenção dos sobreviventes e sua preguiçosa preferência por drágeas noticiosas sob rígido controle de uma entidade chamada “ministro”, o Big Brother ianque.
No romance de Bradbury, publicado em 1953, o grande culpado pela destruição espiritual da América era a televisão, de par com a histeria macarthista e demais efeitos colaterais da guerra fria. Em sua adaptação, Truffaut acrescentou outro elemento: a paranoia atômica, intensa no início da década de 1960. Na versão da HBO, o medo da tecnologia intrusiva, já presente no romance, ganha nova dimensão. Bradbury e Truffaut não tinham como prever o assomo das mídias sociais como fiadoras da desumanização da sociedade.
Bahrani e Amir Naderi começaram a escrever o roteiro logo depois da eleição de Trump, o que explica não só a ênfase à tecnologia de espionagem, à informação manipulada, à idiotização algoritimizada, mas também a palavra de ordem (ou o slogan) da combustiva tirania: “Time to burn for America again” (Hora de queimar pela América de novo), confessadamente derivado do bordão eleitoral trumpista: “Make America great again” (Torne a América grande novamente).
Guy Montag, o trânsfuga encarnado por Oskar Werner na versão Truffaut, ganhou intérprete negro – escolha bem explorada na cena em que seu mentor justifica as razões para a incineração de
Filho Nativo, de Richard Wright –, mas perdeu, desta vez, a esposa, Mildred, chapada por uma overdose de realidade paralela, restando-lhe a amante, Clarisse (interpretada pela argelina Sofia Boutella), que irá libertá-lo da evangelização bibliófoba.
Fahrenheit 451 sempre foi o filme mais impessoal e antisséptico de Truffaut. E, paradoxalmente, o mais frio. Sua refilmagem, embora tenha por modelo Blade Runner, é surpreendentemente mais grave, solene, que bombástica. Em sua trilha sonora, no lugar dos intimidantes metais de Bernard Herrmann, o plácido piano minimalista de Erik Satie estabelece um bem sacado contraste com o horror implantado pelos bombeiros do mal, interventores fardados, que um dia voltarão a só usar água em suas mangueiras.