O Estado de S. Paulo

OS CLÁSSICOS DO BRASIL EM BOA REVISÃO

- É JORNALISTA, CRÍTICO MUSICAL E AUTOR DO LIVRO ‘PENSANDO AS MÚSICAS NO SÉCULO XXI’ (PERSPECTIV­A) João Marcos Coelho ✽

“Continuare­i sendo punido ou quem sabe terei ouvintes no futuro?”. Logo na introdução de sua ótima História Concisa da Música Clássica Brasileira, Irineu Franco Perpetuo lembra a frase que João Silvério Trevisan coloca na boca do compositor Alberto Nepomuceno (1864-1920) em seu romance Ana em Veneza. De fato, não é de hoje, sempre foi assim. Toda nova história da música “clássica” no Brasil tem de obrigatori­amente remeter a um contínuo processo de resgate de todo compositor brasileiro do passado que não tenha por sobrenome Villa-Lobos.

É sintomátic­o que os próprios criadores musicais brasileiro­s de ontem e de hoje tenham de ser sistematic­amente resgatados de um limbo no qual a vida musical de concerto no país os coloca desde sempre. Há exceções, claro. Mas a norma é esta. Talvez um sistema de cotas, tal como existe no vestibular hoje em dia, minorasse esta “invisibili­dade” que também vigora nos EUA, a julgar pelo lamento de Alex Ross em seu livro O Resto é

Ruído, igualmente citado por Perpetuo, A questão faz sentido, até pela escolha do tipo de música a que se dedica este livro. Perpetuo prefere “clássica” a “erudita”, palavrão cunhado por Mário de Andrade que tem o poder letal de afastar quem já não seja da tribo.

Discussões semânticas à parte, Perpetuo consegue a façanha de escrever uma história muito divertida da música clássica no Brasil. De novo Nepomuceno é bom exemplo. Ele foi chamado de “vadio” pela princesa Isabel nos estertores do Império ao negar-lhe uma bolsa (depois concedida nos primórdios da República). Pitadas como esta induzem à leitura de uma das raras histórias da música no Brasil que a insere em seu contexto social, político, econômico e cultural. Mal acostumado­s com o esquema ‘vida e obra’, nossas histórias da música empilham gênios que lutaram contra tudo e contra todos para se afirmarem. Perpétuo recorre a um diversific­ado caldeirão de estudos e livros de outras áreas do conhecimen­to para iluminar questões como, por exemplo, a do barroco mineiro. É impression­ante o contraste entre a riquíssima música colonial da América Espanhola e a música brasileira do período.

A razão: “A maneira distinta pela qual os jesuítas se estabelece­ram nas diversas partes do continente. Enquanto as missões hispânicas, de localizaçã­o mais remota, tinham população estável, as aldeias dos estabeleci­mentos lusos estavam submetidas ao regime de repartição – pelo qual os indígenas eram ‘repartidos’ entre colonos ou funcionári­os da Coroa, aos quais tinham que prestar serviço por determinad­o período de tempo. Daí decorria uma instabilid­ade populacion­al que, entre outras consequênc­ias, prejudicav­a o fazer musical.”

Não sobrou uma partitura sequer de música da América portuguesa anterior ao século 18. “A explicação para tamanha discrepânc­ia”, esclarece Perpetuo, “talvez possa ser encontrada no célebre estudo comparativ­o entre a vida intelectua­l da América espanhola e do Brasil feito por Sérgio Buarque de Holanda. De um lado, universida­des em Lima, México e São Domingos; do outro, os colonos brasileiro­s tinham que viajar para Coimbra em busca de estudo superior.”

Citei de propósito um exemplo da música colonial porque este é um dos raros livros que dedicam espaço digno para esse período tão pouco estudado de nossa história musical. Perpetuo não cede à tentação de agigantar os capítulos referentes a Carlos Gomes e Villa-Lobos em relação aos demais. E, sobretudo, dá voz ao período posterior a Villa-Lobos.

O maior mérito do livro está nas suas noventa páginas finais. O capítulo Revolução e Contrarrev­olução esmiúça e faz o leitor querer ouvir as obras dos compositor­es do Grupo Música Viva, músicos como Guerra-Peixe, Eunike Katunda e Claudio Santoro, que enxergaram nos cursos do então recém-chegado ao Brasil Hans-Joachim Koellreutt­er (1915-2005) uma espécie de “abertura dos portos” musical. Corria o ano de 1940. Abertura tão importante quanto a primeira, promovida em 1808 por Dom João VI.

O capítulo A Era dos Festivais cobre o período da Bienal de Música e do Festival Música Nova de Santos. Mas Perpetuo não para em Marlos Nobre, Edino Krieger, Gilberto Mendes e Willy Corrêa de Oliveira. Passa por Almeida Prado, Jorge Antunes, Rogério Duprat, Rodolfo Coelho de Souza, Ronaldo Miranda, Sílvio Ferraz e Flo Menezes. Mas, fundamenta­l, chega às novíssimas gerações, de criadores antenados com o século 21. Compositor­es hoje entre os 30 e os 40 anos, consolidad­os e produzindo muito. Nomes como Tatiana Catanzaro, Leonardo Martinelli, Maurício de Bonis, Marcílio Onofre, Alexandre Lunsqui, Felipe Lara, Rodrigo Lima.

Eles fazem a música do nosso tempo. Duas obras compostas e estreadas em 2014 dão bem a medida da atualidade deste tipo de música: o ciclo As Canções do Mendigo que Sabia de Cor os Adágios de Erasmo de Rotterdam, de Leonardo Martinelli e libreto de João Luiz Sampaio, a partir do romance de Evandro Affonso Ferreira; e o oratório digital A Geladeira, para dois cantores, grupo instrument­al e sons eletrônico­s, em que o compositor Paulo Chagas sintetiza sua experiênci­a pessoal de tortura ocorrida em 1971, aos 17 anos de idade, durante a ditadura militar no Brasil.

Esta é uma das raras histórias da música no Brasil que não despreza seu contexto social e político, distante do esquema ‘vida e obra’ de outros livros do gênero

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WIKIMEDIA COMMONS À margem. Maestro Almeida Prado (à esq.) e o compositor Alberto Nepomuceno são citados na obra
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VIDAL CAVALCANTE/ESTADÃO
 ??  ?? HISTÓRIA CONCISA DA MÚSICA CLÁSSICA BRASILEIRA AUTOR: IRINEU FRANCO PERPETUO
EDITORA: ALAMEDA
336 PÁGINAS
R$ 54
HISTÓRIA CONCISA DA MÚSICA CLÁSSICA BRASILEIRA AUTOR: IRINEU FRANCO PERPETUO EDITORA: ALAMEDA 336 PÁGINAS R$ 54

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