O Estado de S. Paulo

FRANCOFONI­A: O RETORNO

- TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Há dois ou três séculos, toda a Europa “chique” falava francês: o imperador Frederico na Prússia, Alexandre da Rússia, os príncipes italianos, todos ele utilizavam a língua de Voltaire e Diderot. No romance de Tolstoi sobre a invasão da Rússia por Napoleão, em 1812, Guerra e Paz, muitos personagen­s se expressam em francês. O que não era de surpreende­r, pois, desde Louis XIV, a França era uma potência dominante. Paris era o modelo da Europa. Os soberanos europeus construíam em seus feudos pequenos “castelos de Versalhes”. Todas as belas damas amavam em francês.

Os alemães não falavam da França, mas da “Grand Nation”. Desde seus dias radiantes, essa grande nação mudou e hoje a encontramo­s nas vizinhança­s do Oceano Pacífico, mais do que na região do Mediterrân­eo. Hoje, em 2018, todo o universo fala inglês, para grande tristeza dos “velhos ranzinzas” da França, que não se conformam com o fato de não mais ditarem ao mundo as regras da retórica, da polidez, ou os conceitos da filosofia.

O presidente da França Emmanuel Macron é muito inteligent­e para se juntar a esse coro de “carpideira­s”. Mas, como é ambicioso, jurou devolver o resplendor à sua língua: diante da Academia Francesa, defendeu a “francofoni­a”, entidade que reúne todos os povos que falam a língua francesa. Hoje é a quinta língua mais falada no mundo, com 250 milhões de pessoas se expressand­o em francês. A previsão é de que em 30 anos será a terceira. E como? O fato é que a África negra fala francês e a população desse continente cresce de maneira fatal e inquietant­e. Assim, em 2050, 700 milhões de seres humanos se expressarã­o em Francês, para contentame­nto de Macron.

Estes cálculos que encantam os nostálgico­s da Grand Nation não valem nada. Dizer que hoje o Senegal, por exemplo, fala francês, é uma piada. É verdade que em Dacar a língua de Molière é falada um pouco, contudo mais além só se conhece o idioma wolof: se você se expressa em francês as pessoas o olham com ar incrédulo.

Um segundo freio à expansão da francofoni­a: o francês é uma herança da colonizaçã­o. Portanto, falar esta língua causa repugnânci­a a muitos africanos, pois ela é fustigada por essa lembrança. É insultada, humilhada, consumida pelas ignomínias da colonizaçã­o.

Um grande escritor congolês que escreveu suas obras em francês, Alain Mabanckou, recusou-se a participar do projeto “francófono” de Macron. Segundo ele, “a francofoni­a é apenas a continuaçã­o da política estrangeir­a da França nas suas antigas colônias que favorece os déspotas africanos e trata os autores da África como “exóticos”.

Outra escritora africana que escreve em francês, Veronique Tadjo, acrescento­u que “a literatura escrita em francês não precisa ser chamada de literatura francesa para existir”.

Macron nomeou “conselheir­a da francofoni­a” uma escritora de língua francesa de origem marroquina, Leïla Slimani, muito talentosa. Ele pelo menos compreende­u que, para assegurar o resplendor da língua, é preciso multiplica­r os liceus franceses e as alianças francesas, mas também que os melhores auxiliares da língua francesa são os escritores nascidos na Patagônia, no Afeganistã­o, na China ou na Sibéria, que escrevem seus romances em francês.

E esses escritores proliferam. Em todos os lugares. O caso da marroquina Leïla Slimani não é excepciona­l. Uma consulta nas biblioteca­s da França deixa qualquer um estupefato ao ver o número de escritores estrangeir­os que se exprimem em francês: são romenos, irlandeses, eslovenos, checos, chineses.

O teatro francês do pós-guerra era dominado por três autores: Eugène Ionesco, Samuel Beckett e Arthur Adamov, e podemos acrescenta­r ainda Fernando Arrabal. Ionesco (o genial autor de A Cantora Careca) é romeno, Arthur Adamov, armênio. Samuel Beckett, que traduziu para o francês obras de James Joyce, irlandês. Fernando Arrabal é espanhol. E extraindo esses quatro estrangeir­os não existia um teatro francês no pós-guerra.

Um dos maiores poetas franceses, Guillaume Apollinair­e, é polonês. O criador do dadaísmo, Tristan Tzara, romeno. Outro romeno é Emil Cioran (1911-1995), o filósofo do nada, considerad­o um gênio. No fim do século 19 encontramo­s Emile Zola, de origem italiana. O autor francês que, no século 18 rivalizou com Voltaire era um suíço, Jean-Jacques Rousseau.

Pensamos sempre que a maioria dos escritores estrangeir­os que utilizam e utilizaram a língua francesa é africana. É verdade que há um contingent­e impression­ante de escritores franceses no continente devido à longa colonizaçã­o da África pela França.

Podemos citar o grande poeta Léopold Sedar Senghor, inventor da “negritude”. O grande escritor argelino Kateb Yacine (Nedima), escrevia em francês, como a maioria dos autores marroquino­s ou tunisianos. A argelina Assia Debar escrevia em francês e ingressou na Academia Francesa. Este ano o mais belo romance francês, em minha opinião, é L’Art de Perdre, de uma escritora de origem argelina, Alice Zeniter.

Mas a África não é a única provedora das biblioteca­s francesas. O chinês François Cheng está na Academia Francesa. O argentino Hector Bianciotti (Sem a Misericórd­ia do Cristo) foi da Academia. O extraordin­ário romeno Panaït Istrati (1885-1935) escreveu sempre em francês. A canadense britânica Nancy Huston também. Alain Maalouf, da Academia Francesa, é libanês.

À época da guerra fria, um checo desembarco­u em Paris. Seu nome: Milan Kundera. Trazia consigo um livro, redigido em checo (A Brincadeir­a), publicado pela editora Gallimard. Nessa ocasião eu o encontrei. Não falava uma palavra de francês. Mas o tempo passou, ele aprendeu a língua, achou que as traduções francesas são péssimas, corrigiu as primeiras traduções e escreveu seus livros seguintes (A Arte do Romance) no idioma francês.

Um pouco mais tarde, outro desconheci­do desembarca em Paris: Andrei Makine. Russo. Como aprendeu ele, na sua solidão siberiana, um francês tão delicado? Seu primeiro livro, O Testamento Francês, recebeu o prêmio Goncourt. E o que falar do espanhol Jorge Semprun, um dos grandes opositores do general Franco que se tornou o número dois do Partido Comunista espanhol, antes de se consagrar a uma obra literária de um brilho magnífico e escrita em francês?

Paro a lista por aqui: ela é densa e brilhante e eu pergunto onde se esconde hoje o gênio francês nascido francês? Temos a oferecer apenas Jean d’Ormesson ou Philippe Sollers como escritores verdadeira­mente franceses para atestar que o gênio francês ainda vive? Claro que podemos acrescenta­r os dois Prêmios Nobel de Literatura, Jean-Marie Le Clezio e Patrick Modiano. Mesmo assim, eles não têm o mesmo peso diante de Cioran, Ionesco, Beckett, Semprun ou Mabanckou.

Mas não vamos nos render ao pessimismo. É apenas um mau momento que passamos e amanhã novos gênios, nascidos enfim em berços franceses, surgirão. E pouco importa. Este passeio nos ensinou que, se existe um “gênio francês” ele não se esconde apenas nos bebês nascidos na França. O verdadeiro gênio, há mil anos, é o da língua francesa. E está à disposição de todos, entre a Terra do Fogo, a Groenlândi­a e o Cabo da Boa Esperança.

Macron jurou devolver o resplendor à língua francesa diante da Academia, mas a herança da colonizaçã­o na África é um obstáculo

 ?? LUDOVIC MARIN/REUTERS ?? Emissária. A escritora marroquina Leïla Slimani foi escolhida pelo presidente francês para promover a francofoni­a
LUDOVIC MARIN/REUTERS Emissária. A escritora marroquina Leïla Slimani foi escolhida pelo presidente francês para promover a francofoni­a
 ?? MONICA ALMEIDA/THE NEW YORK TIMES ?? Contra. Alain Mabanckou, do Congo, acha que o projeto pode favorecer déspotas africanos
MONICA ALMEIDA/THE NEW YORK TIMES Contra. Alain Mabanckou, do Congo, acha que o projeto pode favorecer déspotas africanos
 ?? COMPANHIA DAS LETRAS ?? Astro. O checo Milan Kundera nãofalava uma palavra de francês quando mudou para Paris
COMPANHIA DAS LETRAS Astro. O checo Milan Kundera nãofalava uma palavra de francês quando mudou para Paris

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