O Estado de S. Paulo

A PRIMEIRA CINEASTA DA ARÁBIA SAUDITA

- Alexandra Alter TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

Não havia cinemas na Arábia Saudita quando Haifaa al-Mansour crescia em Al Hasa, uma cidade tranquila e conservado­ra na Província Oriental, nos anos 1970 e 1980. Havia uma loja de vídeos, mas ela não podia entrar – só os homens podiam. Então ela ficou do lado de fora, folheou um catálogo e fez a seleção do que um funcionári­o pegaria para ela. Foi assim que se apaixonou por filmes da Disney, de Jackie Chan e musicais de Bollywood, e decidiu que queria ser cineasta.

As coisas mudaram radicalmen­te desde então. As mulheres sauditas agora podem votar e concorrer em eleições municipais; receberam o direito de dirigir; e, no mês passado, o governo suspendeu a proibição de frequentar os cinemas.

Al-Mansour, de 44 anos, teve seu papel nessa transforma­ção cultural. Ela estudou cinema na Universida­de de Sidney, e fez vários curtas e um documentár­io bem-recebido, Women Without Shadows (Mulheres Sem Sombras), sobre a vida das mulheres nos países do Golfo Pérsico. Seu filme de 2012, O Sonho de Wadjda, sobre uma menina em Riad que quer comprar uma bicicleta para poder competir como os meninos, foi inovador em várias frentes: foi o primeiro longa inteiramen­te filmado na Arábia Saudita, e o primeiro dirigido por uma mulher saudita. Foi recebido no Ocidente como uma história sensível que destaca a vida em grande parte invisível das mulheres sauditas.

Na superfície, o novo filme de al-Mansour, Mary Shelley, parece ser uma mudança dramática para ela, que admite ter ficado cética, num primeiro momento, quando a produtora Amy Baer lhe pediu para dirigir um filme biográfico sobre a romancista inglesa (interpreta­da por Elle Fanning) que foi pioneira no século 19.

“Quando eles me enviaram Mary Shelley, não estava realmente certa de que iria me conectar com ela”, disse al-Mansour em uma entrevista em Manhattan, para onde viajara no mês passado, a fim de participar exibição de seu filme no Festival de Cinema Tribeca. “Ela é inglesa e ponto final. O que eu sei sobre as coisas inglesas de período?”

Mas quando leu o roteiro, al-Mansour ficou surpresa com os paralelos entre as dificuldad­es de Shelley para publicar sua obra-prima, Frankenste­in, e conquistar um nome como escritora, e a própria experiênci­a como aspirante a artista em uma cultura muçulmana conservado­ra em que às mulheres têm sido negados tradiciona­lmente os mesmos direitos que os homens.

• Como as reformas culturais na Arábia Saudita podem afetar sua carreira e abrir as indústrias criativas para outras mulheres?

A Arábia Saudita estava se abrindo enquanto estávamos filmando O Sonho de Wadjda, mas não é como agora. O cinema é legal, e agora eles estão começando a dar dinheiro aos cineastas sauditas. Eu estou trabalhand­o em outro filme com o Ministério da Cultura chamado O Candidato Perfeito, sobre uma jovem que está abraçando a política e quer concorrer nas eleições municipais. Eles estão apoiando isso. É surpreende­nte ver a Arábia Saudita se abrindo como um lugar para as mulheres e as artes. • Como trabalhar em ‘Mary Shelley’ foi diferente de dirigir filmes no Oriente Médio? Quando eu estava filmando em Riad, não podia ir à rua – eu precisava ficar em uma van com um walkie-talkie, e sempre tinha que carregar o fardo da censura. A autocensur­a é parte de mim quando trabalho no mundo árabe. Quando comecei a trabalhar no Ocidente, a liberdade era maravilhos­a. Foi bom estar envolvido apenas com a minha arte.

• Você pode falar mais sobre autocensur­a e como ela molda seus filmes árabes? Eu venho de um lugar conservado­r e sempre tento

respeitar minha origem. Não quero jamais fazer algo que seja ofensivo, pois isso coloca uma barreira entre você e o público. Eu sinto que posso apresentar meu trabalho de uma forma que esse público vai gostar e compreende­r, especialme­nte quando se fala sobre os direitos das mulheres ou de fortalecer jovens meninas em uma sociedade conservado­ra. Como eu sou dessa cultura, entendo. Isso me fez dizer as coisas de forma diferente, e é um exercício interessan­te. É preciso ser criativo para dizer as coisas.

• Como seu contexto de crescer em uma cultura extremamen­te conservado­ra moldou a forma de abordar a história de Shelley?

Vindo de onde vim, sei o que significa ser discrimina­do. Mas não é sobre isso, é sobre como podemos ter sucesso e ajudar as mulheres a avançar, e Mary Shelley realmente teve sucesso, apesar de tudo. Foi a isso que me apeguei, porque é o que eu acho que devemos fazer como mulheres, romper com os estereótip­os do que as pessoas esperam de nós. • O que você acha de ‘Pantera Negra’ ter sido o primeiro filme exibido publicamen­te na Arábia Saudita? Eu acho que é muito bom! É um filme diferente; há muitas guerreiras fortes; então é muito bom vê-las abraçando a diversidad­e. Espero que as audiências sauditas vejam que as mulheres também podem arrasar. • Quais outros filmes você gostaria que a Arábia Saudita exibisse? Mary Shelley, Mulher Maravilha, e espero que vejamos mais filmes saindo da Arábia Saudita. • Há planos para exibir ‘Mary Shelley’ lá? Eles me enviaram o material de imprensa de países para onde eu deveria ir para promover o filme, e um deles era a Arábia Saudita. Eu fiquei surpresa. Incrível! Eu espero que mostrem isso na Arábia Saudita, porque é uma história sobre uma jovem que quebra barreiras e tenta ter sua voz ouvida. E ela é menospreza­da intelectua­lmente, o que é uma história muito comum para as mulheres em todos os lugares, e é claro, na Arábia Saudita, ainda um país muito conservado­r. Mas em todo o mundo, as mulheres, intelectua­lmente, não são tão respeitada­s como os homens. Por isso, espero que as mulheres mais jovens vejam o filme e se inspirem.

• Eu imagino que, se exibirem o filme, eles vão cortar as cenas de amor mais explícitas entre Mary e Percy Shelley. Como se sente sendo censurada?

Comigo, tudo bem. Eu acho que é incrível ter o filme exibido na Arábia Saudita, e esse é o jeito de se fazer isso. Não é um tudo ou nada.

Primeira mulher a dirigir um filme no país, Haifaa al-Mansour lança seu novo filme e traça um paralelo entre as sauditas atuais e a vida da inglesa Mary Shelley

 ?? GRAHAM WALZER/ THE NEW YORK TIMES ?? Pioneira. Sucesso internacio­nal dos filmes de Haifaa al-Mansour ajudou a mudar seu país
GRAHAM WALZER/ THE NEW YORK TIMES Pioneira. Sucesso internacio­nal dos filmes de Haifaa al-Mansour ajudou a mudar seu país
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GEM ENTERTAINM­ENT 2018. Elle Fanning (E) é Mary Shelley e Bel Powley é Claire Clairmont no filme de al-Mansour
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TOBIAS KOWNATZKI/SONY PICTURES CLASSICS 2012. ‘O Sonho de Wadjda’ foi o primeiro filme a ser rodado inteiramen­te na Arábia Saudita

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