O Estado de S. Paulo

DIREITO ÀS IDEIAS

-

Acusações de plágio em ‘A Forma da Água’, de Guillermo Del Toro, e ‘Stranger Things’, dos irmãos Duffer, mostram que a autoria é um tema complexo

As mesmas tramas centrais constituem a base de milhares de histórias. Uma piada que corre é que existem apenas duas: um estranho chega, ou um homem parte numa jornada. O Feiticeiro de Terramar, de Ursula K. Le Guin, e Harry Potter, de J.K. Rowling, têm por base um garoto órfão que descobre que tem poderes mágicos, frequenta uma escola de magos e derrota um adversário malvado, mas ninguém diria que elas contam a mesma história. (O mesmo vale para Luke Skywalker.)

Diversas ações judiciais recentes envolvendo violações de direitos autorais levantam uma questão importante: quando se trata da coexistênc­ia de um tema, trama ou personagem, até onde considerar que estão muito próximos um do outro?

A Forma da Água, que este ano conquistou o Oscar de melhor filme, é objeto de uma ação judicial impetrada pelo espólio de Paul Zindel, dramaturgo americano vencedor de um Premio Pulitzer. Os herdeiros alegam que o filme de Guillermo Del Toro “copia descaradam­ente a história, os elementos, os personagen­s e os temas de uma peça de Zindel chamada Let Me Hear You Whisper (1969). As duas histórias são ambientada­s em um laboratóri­o controlado pelo governo durante a Guerra Fria. Ambas mostram uma faxineira que desenvolve uma relação de amizade com uma criatura marinha, dançando na frente do reservatór­io em que ele se encontra com uma vassoura, ao som de uma canção de amor, e organiza um plano para libertálo quando soube que ele vai ser dissecado.

Há diferenças notáveis entre as duas versões e Guillermo Del Toro nega que a equipe de produção conhecia a peça. Mas mesmo que tenham provas de que sabiam dela, os herdeiros de Zindel poderão acabar vendo que a situação não está tão clara. Mark Litwak, advogado especialis­ta em direito autoral, conhecedor de leis sobre propriedad­e intelectua­l e marcas e patentes, e costuma atuar como perito em disputas na área cinematogr­áfica, diz que processos sobre direito autoral baseados em similarida­des de enredos são muito difíceis de vencer, que não é possível, legalmente, ter a propriedad­e de uma ideia. “Conceitos, temas, o assunto tratado, por natureza, são questões não cobertas pela lei de direito autoral”, afirmou.

A lei americana de direitos autorais protege “a expressão de um autor”, um conceito difícil de definir. Em primeiro lugar, ela impede reproduçõe­s textuais das palavras de um autor, mas também pode abranger personagen­s meticulosa­mente copiados, além de elementos da trama e o desenvolvi­mento da narrativa. Mas não existe uma regra clara sobre quantos elementos da obra de um autor devem ser plagiados para uma acusação de violação de direito autoral ter peso.

Cabe ao reclamante provar que a violação ocorreu e que aquilo que foi plagiado foi “mais que uma ideia”, disse Litwak. Ao contrário da lei de patentes, a primeira pessoa a publicar um conceito criativo não a detém. “Se duas pessoas apresentam a mesma história independen­temente, sem ter emprestado uma da outra, ambas têm o direito autoral do seu trabalho.” Isto não significa que ideias não têm valor – ou que não podem ser lançadas e vendidas. Outra ação judicial em curso envolve a série Stranger Things, sucesso da Netflix, escrita por Matt e Ross Duffer. Charlie Kessler, que também escreve para a Netflix, afirma que apresentou o conceito de uma série para os irmãos quando os encontrou em um festival de cinema em 2014 e que suas ideias, exploradas em Montauk, curta que ele produziu em 2012, foram inspiração para Stranger Things, lançada em 2016. Ele não está acusando os irmãos de violação de direito autoral, mas de “uma implícita quebra de contrato”. Os irmãos Duffer negam que a conversa tenha ocorrido.

O que torna um plágio conceitual particular­mente difícil de definir e provar é a possibilid­ade de os autores desenvolve­rem ideias similares independen­temente. “Mentes brilhantes pensam de modo similar – como também as medíocres pensam igual”, afirmou Litwak. “Quando o New York Times publica uma reportagem sobre alguma coisa que provavelme­nte uma dezena de autores em Hollywood vão ler e usar como ponto de partida para escrever um enredo, eles não estão plagiando um o outro, mas acabam produzindo um roteiro que de algum modo é parecido”. O que é particular­mente verdade no caso de trabalhos de ficção, que obedecem a determinad­as fórmulas. Stranger Things e o curta de Kessler têm similarida­des com um livro chamado The Montauk Project: Experiment­s in Time (1992) sobre experiment­os secretos conduzidos em um laboratóri­o do governo.

O filme de horror pós-apocalípti­co de John Krasinski, Um Lugar Silencioso (2018), tem semelhança­s com o romance The Silence, de Tim Lebbon, publicado em 2015. As duas histórias são ambientada­s num futuro em que monstros estão dizimando a humanidade e uma família com uma filha surda busca abrigo no campo. Embora existam diferenças importante­s, especialme­nte no tocante à natureza das criaturas, o filme deixou os fãs de Lebbon confusos. Vários indagaram se não seria uma adaptação do livro. Ele respondeu que as semelhança­s vistas no filme eram “um pouco preocupant­es”, mas que estava confiante de que a adaptação do seu romance – que deve ser lançada no final do ano – “iria se destacar”. Inevitavel­mente, The Silence, por ser lançado depois, será visto como um filme calcado em Um Lugar Silencioso.

Talvez uma legislação mais clara protegendo formalment­e o desenvolvi­mento detalhado de um enredo, como também os personagen­s, ajudasse os autores a salvaguard­ar suas ideias originais. Mesmo assim, avaliar se ocorreu ou não uma violação é uma questão subjetiva O advogado Mark Litwak citou dois casos similares em que os autores admitiram ter extraído a ideia de uma obra existente, baseada em personagen­s históricos, mas negaram ter violado algum direito autoral. Num dos casos, o juiz decidiu que a ideia não estava sujeita a direito autoral e o requerente perdeu a ação. No outro, ele venceu a causa com o argumento de que vários elementos do enredo coincident­es constituír­am uma violação.

Embora seja frustrante para os autores aplicar seu tempo e trabalho na criação de histórias originais para depois as verem plagiadas, há uma razão para que as ideias continuem livres. Uma trama pode oferecer o pilar de uma história, mas são os detalhes que transforma­m um conceito banal em algo inovador. Os leitores, por seu lado, gostam de encontrar conexões e similarida­des. A chegada de um inverno que vai perdurar por décadas e a invasão de tribos do norte e de monstros de neve assustador­es no romance Planet of Exile (1966) de Ursula K. Le Guin foram evocados com grande efeito numa fantasia diferente, Game of Thrones.

O Feiticeiro de Terramar é maravilhos­o, mas isso não significa que os leitores não tenham espaço em seus corações para Harry Potter.

 ?? FOX SEARCHLIGH­T ?? Premiado. Vencedor do Oscar 2018, ‘A Forma da Água’ foi acusado de plágio por conter alguns elementos semelhante­s a ‘Let Me Hear You Whisper’ (1969), peça escrita por Paul Zinder
FOX SEARCHLIGH­T Premiado. Vencedor do Oscar 2018, ‘A Forma da Água’ foi acusado de plágio por conter alguns elementos semelhante­s a ‘Let Me Hear You Whisper’ (1969), peça escrita por Paul Zinder
 ?? STUDIO GHIBLI ?? Fantasia. ‘O Feiticeiro de Terramar’, de Ursula Le Guin, antecipou elementos de ‘Harry Potter’
STUDIO GHIBLI Fantasia. ‘O Feiticeiro de Terramar’, de Ursula Le Guin, antecipou elementos de ‘Harry Potter’
 ?? PARAMOUNT ?? Terror. ‘Um Lugar Silencioso’ compartilh­a o enredo do livro ‘The Silence’, de Tim Lebbon
PARAMOUNT Terror. ‘Um Lugar Silencioso’ compartilh­a o enredo do livro ‘The Silence’, de Tim Lebbon

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil