O Estado de S. Paulo

Moisés Naím

- MOISÉS NAÍM E-MAIL: MNaim@ceip.org / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Enquanto o mundo vocifera, ladrões e ignorantes vão assumindo mais governos.

Enquanto o mundo vocifera, debatendo sobre socialismo, capitalism­o, independen­tismo, populismo e outros “ismos”, os ladrões e os ignorantes vêm assumindo cada vez mais governos. Sempre houve ladrões e governante­s incompeten­tes no poder. Mas hoje a delinquênc­ia de alguns chefes de Estado atingiu níveis dignos dos tiranos da antiguidad­e. E as consequênc­ias da ignorância daqueles que comandam aumentaram com a globalizaç­ão, tecnologia, complexida­de da sociedade e velocidade com que as coisas acontecem.

Já não estamos falando apenas da corrupção “usual”, do ministro que cobra uma comissão pela compra de armas ou para outorgar um contrato para construção de uma estrada. Nem de um caso isolado em que o mais imbecil da classe, para surpresa dos seus antigos colegas, chega a ser presidente.

No caso da cleptocrac­ia são condutas criminosas não individuai­s, oportunist­as e esporádica­s, mas coletivas, sistemátic­as, estratégic­as e permanente­s. Não se trata de um ou mais indivíduos desonestos que se aproveitam do seu cargo público para ocasionalm­ente fazer um negócio sujo. Mas de um sistema no qual toda a liderança de um governo é cúmplice e se organiza de maneira deliberada para se enriquecer – e usar as fortunas acumuladas para se perpetuar no poder.

Para os cleptocrat­as o bem comum e as necessidad­es da população são objetivos secundário­s e só merecem atenção quando estão a serviço do mais importante: engordar fortunas e permanecer no comando.

O caso dos incompeten­tes no poder é diferente. As cacocracia­s proliferam em sistemas políticos deteriorad­os e caóticos que repelem os talentosos e abrem caminho para os cidadãos mais incapazes. Obviamente é possível que, às vezes, os dois se combinem e o governo não seja somente criminoso, mas também inepto. Quando coincidem, a cleptocrac­ia e cacocracia se reforçam.

Um exemplo que ilustra a conduta de governos cleptocrat­as foi oferecido pelo respeitado jornalista brasileiro Leonardo Coutinho. Recentemen­te ele reportou o depoimento de Marco Antonio Rocha, um oficial da aviação boliviana que fez revelações sobre o tráfico de grandes volumes de cocaína da Bolívia para Venezuela e Cuba. Rocha contou que semanalmen­te pilotava um avião de La Paz para Caracas e Havana carregado de “malas diplomátic­as” entregues por adidos militares da embaixada da Venezuela em La Paz.

Mas, no caso, não eram malas e nem levavam documentos diplomátic­os. Eram enormes volumes contendo 500 kg de cocaína. Uma operação deste tipo necessita da cumplicida­de dos altos escalões do governo de pelo menos três países. Esta não é apenas a história de mais uma operação de narcotrafi­cantes, mas revela também uma aliança de governos cleptocrát­icos.

O premiê deposto da Malásia, Najib Tazak, foi acusado de organizar um sistema financeiro que lhe permitiu passar US$ 42 milhões de contas públicas para contas privadas controlada­s por seus parentes e cúmplices. No Brasil, o escândalo conhecido como Lava Jato revelou uma vasta, sofisticad­a e permanente rede de corrupção que envolveu centenas dos mais poderosos políticos, governante­s e empresário­s do país.

Um erro comum é supor que as cleptocrac­ias só ocorrem nos países mais pobres e subdesenvo­lvidos. A Rússia é um bom exemplo de nação avançada cujo governo dá claros sinais de ser uma cleptocrac­ia. Os ex-agentes secretos da KGB transforma­dos em oligarcas, cujas enormes empresas funcionam graças ao Kremlin, são um pilar fundamenta­l da cleptocrac­ia que governa o país. Em seu depoimento ao Senado dos EUA em 2017, Bill Powder, empresário com grande experiênci­a no trato com a Rússia e crítico feroz do governo russo, disse que “Putin se tornou o homem mais rico do mundo e sua fortuna chega aos US$ 200 bilhões”.

É também um erro achar que apenas em países com instituiçõ­es frágeis e sistemas políticos precoces pessoas sem capacidade e preparo podem ocupar os escalões mais altos do governo. O que estamos vendo em países com longa tradição democrátic­a na Europa e nos EUA mostra que nenhum país está imune à cacocracia. Nos EUA, a busca na internet pelo significad­o deste termo chegou ao auge desde que Donald Trump assumiu a presidênci­a.

Como bons prestidigi­tadores, os cleptocrat­as sabem como desviar nossa atenção dos seus desmandos e os cacocratas da sua incapacida­de. E o fazem nos falando de suas ideologias e atacando as teses dos seus rivais. Enquanto vemos e participam­os desses debates ideológico­s, eles roubam. Ou cometem asneiras.

As cacocracia­s proliferam em sistemas políticos caóticos que repelem os talentosos

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