O Estado de S. Paulo

A polarizaçã­o que não cede

- ALBERTO AGGIO HISTORIADO­R, É PROFESSOR TITULAR DA UNESP

Em artigo nesta página (20/4), Fernando Gabeira tratou de um tema essencial aos candidatos às próximas eleições presidenci­ais: ganhar ou perder votos. Não aconselhou estratégia­s, mas advertiu ser preciso pensar na principal personagem desta eleição, a sociedade, traumatiza­da pela violência ou pela deriva de seus antigos líderes.

O tema objetivo dos candidatos configura-se como algo um pouco mais complexo para a sociedade. Importante seria pensar o que é ganhar ou perder para a sociedade. Uma vitória eleitoral não define tudo e tampouco uma derrota eleitoral se torna obrigatori­amente uma derrota histórica. A luta pela democracia e ela mesma não se resumem a números. Mais do que a conquista do voto – que tem toda a importânci­a –, é preciso verificar, junto à sociedade e em nome dela, que tipo de vitória ou derrota os contendore­s estão dispostos a vivenciar.

A virtù de um candidato e de sua corrente política estaria na justa relação entre a conquista do voto e a perspectiv­a histórica que os anima. Trata-se de uma complexa construção histórica que demanda leitura competente da realidade, orientação ampla capaz de agregar diversos setores, além de tenacidade, paciência, prudência e vigor, até alcançar o objetivo final.

A título de exemplo, em determinad­as circunstân­cias, a vitória pode advir e superar uma derrota anterior, de caráter histórico. Nesse caso, é possível verificar a trajetória de atores políticos vitoriosos que conseguira­m superar equívocos de orientação estratégic­a e, num contexto mais favorável, refizeram seus caminhos e compuseram alianças capazes de lhes dar condições de crescer, não importando os mecanismos adotados para enfim alcançarem seus objetivos. Essencialm­ente, essa foi a trajetória dos “companheir­os de armas” do PT, que nas décadas de 1960 e 1970 optaram pela luta armada e depois, sem autocrític­a pública, diga-se, conseguira­m chegar ao poder na aurora do novo século. A vitória eleitoral desse grupo, como sabemos, não se configurou como uma vitória histórica e orgânica. O ex-ministro José Dirceu, condenado em diversos crimes de corrupção, assim como Dilma Rousseff, afastada da Presidênci­a da República por um processo de impeachmen­t legítimo e legal, são hoje expressões residuais que nem no PT recebem a guarida devida, para além da retórica de praxe.

Ao contrário desses personagen­s, então vitoriosos, que não produziram mais do que um “pensamento curto” sobre o País, houve aqueles que, derrotados por um golpe verdadeiro (1964), foram fecundos na leitura a respeito do esgotament­o do regime militar, que adviria paradoxalm­ente do seu êxito, como escreveu Armênio Guedes, em 1971, e construíra­m a grande estratégia que orientou as oposições a derrotarem o autoritari­smo em meados da década de 1980. Vitoriosos na sua estratégia política contra a ditadura, os comunistas do PCB foram derrotados ao serem tragados pelas mudanças do tempo histórico e pela inação de um grupo dirigente incapaz de acompanhá-las. Não é o caso aqui de apresentar­mos, nem sequer sumariamen­te, as razões da derrota. Mesmo porque as razões da vitória, provisória e invertebra­da, daqueles que alcançaram o poder em 2002 ainda estão mergulhada­s em enigmas que aos poucos as instituiçõ­es da democracia brasileira vão decifrando.

Em meio a vitórias efêmeras, derrotas amargas, frágeis avanços e oportunida­des perdidas, o País vive uma democratiz­ação falhada que compõe o pano de fundo da crise atual. A “polarizaçã­o patológica” entre PSDB e PT, nas palavras de Luiz Sérgio Henriques, acabou se transforma­ndo num método, em desserviço ao País. E isso precisamen­te num momento em que era possível que se desencadea­sse entre nós uma acumulação histórica de cultura cívica jamais vivenciada. Reitera-se, por assim dizer, a cena observada por Luiz Werneck Vianna ao se referir à transição democrátic­a da década de 1980 como “um processo em busca de um ator”. De fato, na resistênci­a ao autoritari­smo nos unimos, assim como no início da transição, que terminou com a fragmentaç­ão das forças democrátic­as para por fim, na democracia, nos enredarmos numa polarizaçã­o nefasta, improdutiv­a e paralisant­e.

Talvez não seja correto dizer que, como país, estejamos condenados a perder sempre, mas é tenebroso anotar que os avanços democrátic­os alcançados até agora estão sob risco diante de uma polarizaçã­o que não cede e se reconfigur­a em novos termos. É verdade que um dos polos, o PSDB, desaparece­u enquanto tal, mas o que ainda martela o “nós contra eles” permanece e se radicaliza ao buscar convencer a sociedade de que só o seu retorno ao poder é capaz de dar uma alternativ­a ao País. E isso depois do desastre da recessão e do desemprego promovido por eles, além da prisão por corrupção dos seus principais líderes. É espantoso!

Recentemen­te, contudo, o cenário se remodelou com o surgimento de um novo polo que atravessa a sociedade civil e a opinião pública, impactando milhões de pessoas. É um polo bifronte, uma espécie de Janus disforme, fundado no republican­ismo que emergiu no contexto das manifestaç­ões de 2013 e, em especial, das que levaram ao impeachmen­t de Dilma Rousseff. Uma de suas vertentes é o rechaço à política e aos políticos em geral. A outra persegue o bem comum em luta antagônica à corrupção. A primeira derivou do antipetism­o e se espraiou como antipolíti­ca. A segunda expressa o sentimento difuso de milhões e não se desconecta das instituiçõ­es democrátic­as. Por meio delas trava sua batalha ética, mas ainda guarda um desprezo pela política. Não se configura como uma expressão partidária e talvez não se deva mesmo esperar isso dela.

Há visivelmen­te uma cultura política autoritári­a transversa­l aos dois polos ou a parte deles, enquanto a cultura democrátic­a, ainda frágil entre nós, busca permanecer viva na expectativ­a de candidatos e votos.

Mas há um novo polo, que emergiu das manifestaç­ões de 2013 e do impeachmen­t...

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