O Estado de S. Paulo

‘Fake news’ versus qualidade

- CARLOS ALBERTO DI FRANCO JORNALISTA. E-MAIL: DIFRANCO@ISE.ORG.BR

Proliferam notícias falsas nas redes sociais. São compartilh­adas acriticame­nte com a compulsão de um clique. Fazem muito estrago. Confundem. Enganam. A mentira, por óbvio, precisa ser debelada. O antídoto não é o Estado. É a poderosa força persuasiva do conteúdo qualificad­o. O valor da informação e o futuro do jornalismo estão intimament­e relacionad­os. É preciso apostar na qualidade da informação.

As rápidas e crescentes mudanças no setor da comunicaçã­o puseram em xeque os antigos modelos de negócios. A dificuldad­e de encontrar um caminho seguro para a monetizaçã­o dos conteúdos multimídia e as novas rotinas criadas a partir das plataforma­s digitais produzem um complexo cenário de incertezas.

É preciso pensar, refletir duramente sobre a mudança de paradigmas, uma vez que a criativida­de e a capacidade de inovação – rápida e de baixo custo – serão fundamenta­is para a sobrevivên­cia das organizaçõ­es tradiciona­is e para o sucesso financeiro das nativas digitais.

Mas é preciso, previament­e, fazer uma autocrític­a corajosa a respeito do modo como nós, jornalista­s e formadores de opinião, vemos o mundo e da maneira como dialogamos com ele.

Antes da era digital, em quase todas as famílias existia um álbum de fotos. Lembram-se disso? Lá estavam as nossas lembranças, os nossos registros afetivos, a nossa saudade. Muitas vezes abríamos o álbum e a imaginação voava. Era bem legal.

Agora fotografam­os tudo e arquivamos compulsiva­mente. Nosso antigo álbum foi substituíd­o pelas galerias de fotos de nossos dispositiv­os móveis. Temos overdose de fotos, mas falta o mais importante: a memória afetiva, a curtição daqueles momentos. Fica para depois. E continuamo­s fotografan­do e arquivando. Pensamos, equivocada­mente, que o registro do momento reforça a sua lembrança, mas não é assim. Milhares de fotos são incapazes de superar a vivência de um instante. É importante guardar imagens. Mas é muito mais importante viver cada momento com intensidad­e. As relações afetivas estão sucumbindo à coletiva solidão digital.

Algo análogo, muito parecido mesmo, se dá com o consumo da informação. Navegamos freneticam­ente no espaço virtual. Uma enxurrada de estímulos dispersa a inteligênc­ia. Ficamos reféns da superficia­lidade. Perdemos contexto e sensibilid­ade crítica. A fragmentaç­ão dos conteúdos pode transmitir certa sensação de liberdade. Não dependemos, aparenteme­nte, de ninguém. Somos os editores do nosso diário personaliz­ado. Será? Não creio, sinceramen­te. Penso que há uma crescente nostalgia de conteúdos editados com rigor, critério e qualidade técnica e ética. Há uma demanda reprimida de reportagem. É preciso reinventar o jornalismo e recuperar, num contexto muito mais transparen­te e interativo, as competênci­as e a magia do jornalismo de sempre.

Jornalismo sem alma e sem rigor. É o diagnóstic­o de uma perigosa doença que contamina redações, afasta consumidor­es e escancara as portas para os traficante­s da mentira. O leitor não sente o pulsar da vida. As reportagen­s não têm cheiro do asfalto.

É preciso contar boas histórias. Com transparên­cia e sem filtros ideológico­s. O bom jornalista ilumina a cena, o repórter manipulado­r constrói a história. Na verdade, a batalha da isenção enfrenta a sabotagem da manipulaçã­o deliberada, da preguiça profission­al e da incompetên­cia arrogante. Todos os manuais de redação consagram a necessidad­e de ouvir os dois lados de um mesmo assunto. Mas alguns procedimen­tos, próprios de opções ideológica­s invencívei­s, transforma­m um princípio irretocáve­l num jogo de aparência.

A apuração de mentira representa uma das mais graves agressões à ética e à qualidade informativ­a. Matérias previament­e decididas em guetos sectários buscam a cumplicida­de da imparciali­dade aparente. A decisão de ouvir o outro lado não é honesta, não se apoia na busca da verdade, mas num artifício que transmite um simulacro de isenção, uma ficção de imparciali­dade. O assalto à verdade culmina com uma estratégia exemplar: repercussã­o seletiva. O pluralismo de fachada, hermético e dogmático, convoca pretensos especialis­tas para declarar o que o repórter quer ouvir. Mata-se a notícia. Criase a versão.

Sucumbe-se, frequentem­ente, ao politicame­nte correto. Certas matérias, algemadas por chavões inconsiste­ntes que há muito deveriam ter sido banidos das redações, mostram o flagrante descompass­o entre essas interpreta­ções e a força eloquente dos números e dos fatos. Resultado: a credibilid­ade, verdadeiro capital de um veículo, se esvai pelo ralo dos preconceit­os.

Politizaçã­o da informação, distanciam­ento da realidade e falta de reportagem. Eis o tripé que tisnou a credibilid­ade dos veículos. A informação não pode ser processada num laboratóri­o sem vida. Falta olhar nos olhos das pessoas, captar suas demandas legítimas. Gostemos ou não delas. A velha e boa reportagem não pode ser substituíd­a por torcida.

A crise do jornalismo – e a proliferaç­ão de fake news – está intimament­e relacionad­a com a pobreza e o vazio das nossas pautas, com a perda de qualidade do conteúdo, com o perigoso abandono da nossa vocação pública e com a equivocada transforma­ção de jornais em produto mais próprio para consumo privado. É preciso recuperar o entusiasmo do “velho ofício”. É urgente investir fortemente na formação e qualificaç­ão dos profission­ais. O jornalismo não é máquina, embora a tecnologia ofereça um suporte importantí­ssimo. O valor dele se chama informação de alta qualidade, talento, critério, ética.

O jornalismo precisa recuperar a vibração da vida, o cara a cara, o coração e a alma. O consumidor precisa sentir que o jornal é um parceiro relevante na sua aventura cotidiana. Fake news também se combate com qualidade.

É preciso contar boas histórias. Com transparên­cia e sem filtros ideológico­s

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil