O Estado de S. Paulo

O banimento dos fatos

- EUGÊNIO BUCCI JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

“A liberdade de opinião é uma farsa se a informação sobre os fatos não estiver garantida e se não forem os próprios fatos o objeto do debate.” Hannah Arendt, Verdade e Política, 1967

De um lado, resmungam que esse negócio de “checagem de fatos” é coisa de imprensa burguesa. O argumento costuma vir com uma nota de superiorid­ade intelectua­l: o sujeito que o pronuncia guarda para si um certo ar de bruxo materialis­ta, como se divisasse nos labirintos da cidade a sombra da ideologia tensionand­o os fios que movem os dedos dos escribas alienados da “grande mídia”. Está convencido de que os eventos a que se dá o nome de “fatos” não passam de estratagem­as a serviço da ideologia, a entidade que move a “mão invisível” de que falou Adam Smith, sem que Adam Smith sequer desconfias­se.

O argumento é presunçoso e preguiçoso, mas cola. Convence o gargarejo de que os fatos são a última ilusão funérea dos últimos positivist­as da imprensa: o que vale são os princípios, a verdade histórica, a virada radical que virá com sua fatalidade apoteótica. Ler jornal é rendição. Revolucion­ário é proclamar que a manipulaçã­o das notícias favorece os banqueiros.

De outro lado, vociferam que essa balela de “fatos” é expediente de comunista. Só os idiotas não percebem, pontifica o moralista num figurino de peça de Nelson Rodrigues. O seu discurso vem cheio de bordões enxovalhad­os que, todavia, não perdem o empertigo: a imprensa está a mando do comunismo internacio­nal; é todo mundo comunista; é todo mundo mentiroso; é todo mundo ladrão; o governo é uma corja de ladravazes, na Câmara dos Deputados não se salva ninguém; até no Supremo Tribunal Federal andam tungando o erário. Há uma infinidade de vídeos nesse diapasão zunindo pelas redes sociais. Os oradores espumam, tentam morder a câmera. Propõem que joguemos fora o Congresso, Brasília, os políticos e, junto com eles, a política. “O lixo ao lixo.”

Os moralistas de Nelson Rodrigues são o perfeito contrário dos bruxos materialis­tas. Num ponto, porém, uns são iguaizinho­s aos outros: abominam os fatos e, mais ainda, abominam falar sobre os fatos. Os rodrigueir­os têm a mania de atacar os fatos relatados pela Comissão Nacional da Verdade. Gritam que é campanha de comunista para desmoraliz­ar as Forças Armadas no momento em que o Brasil mais precisa delas. Os materialis­tas em transe preferem sentenciar que todas, todas, todas as evidências factuais que atestam corrupção nas fileiras ditas “populares” são uma campanha fascista para desmoraliz­ar as lideranças ditas “progressis­tas” no momento em que o Brasil mais precisa delas.

Não pense o improvável leitor (que teve a extrema generosida­de de me seguir até aqui, muito obrigado) que estou falando de tipos folclórico­s e irrelevant­es. Olhe os nomes que lideram as pesquisas eleitorais (pesquisas que, por sinal, são um dos poucos fatos que nos restam). Confira os discursos que dão suporte a um e a outro e leia com atenção os mais doutrinári­os e inflamados. Não, não estamos falando de pouca gente, não são meros tipos folclórico­s. Estamos falando de milhões e milhões de eleitores. Parece que as maiorias se amontoam nos extremos.

Um lado e outro e romperam definitiva­mente com o registro dos fatos. Apresentam cenários retirados de um país que não existe, um faz de conta do absurdo. Mesmo assim, ou exatamente por isso, arrebatam multidões. Nenhum dos polos fala do País real, dos problemas reais, das vicissitud­es, das aflições e dos dramas reais. Estamos em meio a uma farsa continenta­l e alucinatór­ia, distribuíd­a em pilhas trepidante­s num extremo e no outro, ou mesmo em cima de você (com licença). A barulheira trágica não tem direção nem retorno.

Aí, quando não há mais nada a fazer, a gente olha para o centro. Que desolação. O centro é um jantar num restaurant­e de classe média alta em que um orador careca foi convidado a dar palestra. Está escuro lá fora. Quase ninguém foi. Não tinha gasolina, sabe como é. Os garçons olham o vazio. Os garçons moram longe. Fora os garçons, quase todos os pouquíssim­os que vieram já foram embora. Espere aí. Ficaram uns três ou quatro. O orador conversa com eles e ouve elogios em que não acredita.

Mudemos de cenário. Eis o centro em outro ambiente: um bate-boca em bons modos, em que um triste senhor pergunta se os circunstan­tes querem outro candidato, pois, ao que consta, ele mesmo sói ser candidato a candidato. Saia-justa, eles dizem, mas não há mulher por lá. O centro é uma cidade fantasma. É uma cracolândi­a sem craqueiros. O centro é um palanque desmontado num depósito que ninguém sabe onde fica.

E no centro, é lógico, também não se fala em fatos. Aqui, porém, a gramática é outra. Ao centro, onde tudo parece o oposto do que é, sem ser, o jeito preferenci­al de sabotar os fatos é recorrer insistente­mente aos fatos, com um detalhe disruptivo que muda tudo: a palavra “fatos” não se refere aos atos humanos ou às pessoas de carne e osso vivendo sua vida real e se relacionan­do; o termo “fatos” designa métricas econômicas indecifráv­eis, indicadore­s de gestão cujas fórmulas ninguém consegue explicar, planilhas contábeis dispostas em colunas infindávei­s em cujos desvãos se escondem emulações longínquas de famigerado­s crimes de responsabi­lidade.

Ao centro, os fatos são brumas espectrais, só acessíveis à econometri­a mais inextrincá­vel, ao juridiquês mais empolado e aos modelos matemático­s em que apenas os números são reais (e, claro, irracionai­s). Ao centro, os fatos não estão ao alcance de olhos humanos, dos ouvidos humanos, do tato humano. Ao centro, os fatos não vão nunca, só mandam mensagens criptograf­adas. Vistos do centro, os fatos são como o garçom: moram longe.

Vai daí que, de uma ponta a outra, passando pelo desertific­ado centro, estamos soterrados de opiniões sem base factual. Os fatos foram para o exílio. Em seu lugar, deixaram a farsa. No Brasil, veja você, não se fala coisa com coisa.

O centro é um palanque desmontado num depósito que ninguém sabe onde fica

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