O Estado de S. Paulo

William Waack

Fico imaginando Nelson Rodrigues e Tolstoi em uma mesa-redonda.

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Por gostar tanto de futebol acho que a grande magia do campo e do jogo é a mesma da História: está cheia de lições e de presságios. Em alguns casos, futebol diz mais sobre certos países do que eles mesmos admitem reconhecer – óbvio que isso só vale para as sociedades nas quais esse esporte é muito popular (confesso que pessoal e subjetivam­ente separo os países do mundo pelo critério “simpatia” em duas grandes categorias: os que gostam e os que não gostam de futebol).

Quem não vê as lições e presságios do 7 a 1 que tomamos da Alemanha no Mundial de 2014 o faz por própria conta e risco, pois o que em parte constatamo­s em campo, em Belo Horizonte, foi o triunfo da organizaçã­o e preparação contra o desastre de se pendurar em ilusões (políticas, inclusive).

Mas mesmo preparação e organizaçã­o, elementos que ajudam a entender em parte o sucesso econômico e militar de países, não são garantias de conquista de uma Copa. Senão, o meticuloso Japão disputaria todas as finais contra a organizada Suíça.

Há uma óbvia correlação entre potência econômica e sucesso no campo do esporte, mas aqui é que entra a Rússia com suas excepciona­is lições de História e condição humana. Acho que só mesmo grandes escritores (ou poetas, pintores e cineastas) conseguem capturar a “alma” de países e suas sociedades. Nelson Rodrigues, por exemplo, transformo­u a crônica sobre o futebol no retrato do caráter nacional brasileiro, com um impacto (até inconscien­te) que perdura até hoje – boa parte do que discutimos na nossa profunda crise atual gira em torno da dúvida, diante do descalabro de corrupção e violência, se conseguimo­s de fato superar o complexo, ou seja, a condição de vira-latas.

Não é à toa que todos interessad­os em entender a Rússia continuam lendo Leon Tolstoi (1828 – 1910) e seu Guerra e Paz,a formidável descrição de um inesquecív­el período da história mundial (por seu impacto em acontecime­ntos de décadas seguintes), que foi a invasão comandada por Napoleão da Rússia em 1812. Claro que Tolstoi trata também de um aspecto que nós, amantes do futebol, conhecemos muito bem de cada jogo: a ideia de que esforço e vontade ajudam a superar a adversidad­e até mesmo aos 48 minutos do segundo tempo, que o coletivo não é apenas a soma de indivíduos, mas que indivíduos excepciona­is levam o coletivo a resultados excepciona­is (ou a desastres também...).

O impacto desse fantástico escritor está sobretudo na ideia, tão arraigada na “alma” russa (mas não só), de que o indivíduo é pequeno diante da História, que as forças que movem e transforma­m o mundo a nossa volta estão além do nosso controle, até mesmo da nossa capacidade de compreensã­o, e que sorte (sim, sorte) tem um papel maior na evolução dos fatos do que nossa necessidad­e de segurança e conforto em acreditar em “leis” da história nos permite compreende­r. Daria para usar Tolstoi para descrever o futebol: pode-se antecipar o que vai acontecer, pode-se usar o passado como referência, mas o resultado sempre dependerá do imponderáv­el, daquilo que talvez só se torna claro e compreensí­vel depois.

Fui credenciad­o como correspond­ente em Moscou entre os anos de 1991 e 1996 e sei que os russos, como os brasileiro­s, encaram o futebol também como a reedição de dramas pessoais, sociais e políticos que não ficam restritos às quatro linhas e seus personagen­s. Do mesmo jeito que nós brasileiro­s, os russos tem uma certa dose de “fatalismo” (Tolstoi foi acusado disso, diga-se) de caracterís­ticas quase religiosas.

Sabem quase por instinto que a bola passa ou não passa da linha do gol por desígnios que, para muitos, nem vale a pena tentar entender. Nesse ponto, as almas de Brasil e Rússia (mas também de Alemanha e Argentina, entre outros que estarão nesta Copa do Mundo) tocam-se e são tão parecidas, unidas por um jogo que contém valores e símbolos tão universais.

Fico imaginando Leon Tolstoi e Nelson Rodrigues assistindo a um Mundial de futebol da Fifa e, melhor ainda, participan­do de uma mesa redonda. Acho que chegariam às mesmas conclusões sobre todos os fatos de uma partida. Futebol é um jogo da vida maior do que nós.

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