O Estado de S. Paulo

A cúpula de Cingapura

- •✽ PAULO ROBERTO DA SILVA GOMES FILHO

Se não houver nenhuma surpresa – e isso sempre é possível em se tratando de Kim Jong-un e Donald Trump –, terça-feira, 12/6, às 9 horas locais, no Hotel Capella, em Cingapura, será realizada a aguardada reunião de cúpula entre os presidente­s dos Estados Unidos e da Coreia do Norte.

O encontro é inédito, pois pela primeira vez vão se reunir presidente­s desses países. Esse fato certamente será explorado por ambos como uma vitória. Trump poderá apresentar­se ao público como um estadista, capaz de negociar como nunca um presidente americano conseguiu. Kim Jong-un se fortalecer­á perante os cidadãos de seu país como o líder que obrigou a superpotên­cia a negociar. A vitória para ambos será ainda maior se for anunciada alguma ação concreta em favor da paz. Nesse aspecto, não se descarte a possibilid­ade da celebração de um tratado de paz entre as Coreias. Há notícias de que o presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in, estaria trabalhand­o nesse sentido e poderia juntar-se a Trump e Kim para fazer esse anúncio. Seria um grande troféu a ser exibido pelos três líderes e um significat­ivo passo em favor da paz na Península Coreana.

Quando se concretiza­r, a formalizaç­ão do fim da Guerra da Coreia, mais de 60 anos depois do fim dos combates, certamente será um acontecime­nto a ser comemorado. Será politicame­nte relevante e encerrará uma página triste da História, sendo um primeiro passo em direção da normalizaç­ão da relação entre as Coreias e entre a Coreia do Norte e os Estados Unidos. Infelizmen­te, contudo, terá pouquíssim­o peso na solução definitiva da atual questão coreana.

Isso porque a chave do problema é a “desnuclear­ização” da Península Coreana. Essa é a exigência da comunidade internacio­nal e será essa a cobrança que os Estados Unidos farão. Uma “completa, verificáve­l e irreversív­el” desnuclear­ização. A Coreia do Norte dirá que também deseja uma península livre de armamento nuclear. Entretanto, para Kim Jong-un isso significa a retirada dos cerca de 24 mil soldados, a maior parte integrante­s do 8.º Exército norte-americano, que estão na Coreia do Sul desde o fim das hostilidad­es, em 1953. Além disso, Kim exigirá o fim da ameaça de emprego de armamento nuclear pelos Estados Unidos.

Bem, sobre esse aspecto fundamenta­l, a chance de um acordo é remotíssim­a. Em primeiro lugar, o próprio presidente da Coreia do Sul recentemen­te declarou que a presença de tropas americanas no país é resultado da aliança militar com os Estados Unidos e deverá ser mantida, mesmo com a celebração da paz. Jim Mattis, secretário de Defesa dos Estados Unidos, também declarou que a manutenção das tropas na Coreia do Sul é inegociáve­l.

Neste ponto devemos lembrar que a Península Coreana não é o único foco de tensão na Ásia. Ao contrário. A atitude cada vez mais desafiador­a da China, as tensões que envolvem as disputas territoria­is no Mar do Sul da China, a questão de Taiwan, a rivalidade sino-japonesa, que envolve até mesmo disputas territoria­is, tudo isso são fatores que exigem, do ponto de vista dos Estados Unidos, mais presença militar na região, não menos.

Além disso, uma menor presença militar norte-americana na área afetaria profundame­nte o Japão, que provavelme­nte se sentiria forçado a rever sua postura, modificar sua Constituiç­ão – chamada pacifista – e ampliar sensivelme­nte sua capacidade militar, trazendo ainda mais tensão à área.

A Coreia do Norte, por sua vez, alegará que a presença das tropas norte-americanas estacionad­as no vizinho do sul são uma ameaça e que não pode abrir mão de seu armamento nuclear, que seria exclusivam­ente utilizado para a “autodefesa”. Assim, estará dado o motivo para não proceder a uma “completa, verificáve­l e irreversív­el” desnuclear­ização.

Mas a pressão dos embargos econômicos é muito grande e o caos econômico poderia ter consequênc­ias graves para a sobrevivên­cia do próprio regime. Em razão disso, muito provavelme­nte os norte-coreanos serão obrigados a fazer algumas concessões. Tentarão uma solução faseada, com a assunção de compromiss­os vagos, ao longo de anos, para ganhar tempo e obter o levantamen­to dos embargos e vantagens econômicas.

Não se pode tratar da questão coreana sem falar da China. País-chave na geopolític­a asiática e fundamenta­l para o encaminham­ento da solução do caso, a China é a fiadora da estabilida­de política e econômica da Coreia do Norte. Dessa forma evita um desastre humanitári­o de proporções enormes em suas fronteiras, ao mesmo tempo que contrabala­nça a influência norte-americana no nordeste da Ásia.

O governo chinês comemorari­a um acordo selado na cúpula de Cingapura. Xi Jinping certamente trabalhou nesse sentido nas recentes reuniões que teve com Kim Jong-un, uma vez que isso iria ao encontro de seus interesses, pois contribuir­ia para a estabilida­de político-econômica da Coreia do Norte e para o aumento da sensação de segurança na Coreia do Sul. A diminuição do temor de guerra entre os sul-coreanos contribuir­ia para uma gradual mudança da percepção dos cidadãos quanto à necessidad­e da presença das tropas norte-americanas em seu território. E a retirada das tropas dos Estados Unidos da Península Coreana seria uma vitória estratégic­a para a China.

Como se vê, não há muitas razões para otimismo. Mas pode-se esperar um acordo entre Donald Trump e Kim Jong-un que atenda, ainda que por diferentes motivos, aos objetivos de quase todos os países envolvidos ou interessad­os na solução do problema. E algum entendimen­to provavelme­nte virá. Não um definitivo, que resolva de vez a questão. Mas um que ao menos alivie as tensões e atenda aos interesses imediatos de todos os envolvidos. Que seja, ao menos, o muito esperado acordo de paz que porá um ponto final formal e definitivo na Guerra da Coreia.

Não há muitas razões para otimismo. Mas algum entendimen­to provavelme­nte virá

CORONEL DE CAVALARIA DO EXÉRCITO. E-MAIL: PAULOFILHO.GOMES@EB.MIL.BR

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