O Estado de S. Paulo

O coração das coisas

- LEANDRO KARNAL LEANDRO KARNAL ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Omúsculo cardíaco é uma parte importante do corpo humano, como todos sabemos. Em harmonia e de forma tranquila, ele terá executado um trabalho enorme ao longo de toda uma vida. Batendo entre 60 e 100 vezes por minuto nos adultos, pulsa ainda mais rápido nas crianças. Como máquina, é admirável, se você supuser como ele funciona por uns 80 anos sem grandes manutençõe­s. Como aparelho, o que mais existe na sua casa que tenha essa longevidad­e e eficácia?

O primeiro transplant­e cardíaco foi realizado pelo cirurgião sul-africano Christiaan Barnard, em 3 de dezembro de 1967. O paciente faleceu pouco depois. Um coração humano havia pulsado no peito de outra pessoa: foi uma revolução. Hoje, nossas tecnologia­s são um pouco menos invasivas e mais eficazes. Como parte do homem ciborgue previsto por Yuval Harari no livro Homo Deus, estamos perto de uma completa automação tecnológic­a do “motor da vida”.

Antes de ser destrinçad­o e dissecado pela medicina, o coração era tratado com mais poesia. Sede da memória, saber algo de cor (par coeur em francês, by heart em inglês, com ligeira alteração de preposição) era saber de coração, forma automática de memória. Anunciar que o conhecimen­to está “de cor e salteado” é orgulhar-se do perfeito domínio do tema. A aliança do dedo anelar faz parte de uma crença antiga de que ali existiria um longo vaso sanguíneo que levaria direto ao coração, trazendo o casamento sempre à memória. “Ouça mais seu coração do que seu cérebro” implica afirmar que a sinceridad­e, pelo menos metaforica­mente, estaria nos afetos em detrimento da razão. Curioso é que afetos e razão são processado­s dentro da mesma caixa craniana, porém a ideia permanece.

Santo Agostinho era representa­do com um coração na mão, tradição que pode ter nascido das suas frases mais apaixonada­s nas Confissões: “Tarde Te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova... Durante os anos de minha juventude, pus meu coração em coisas exteriores que só faziam me afastar cada vez mais d’Aquele a Quem meu coração, sem saber, desejava...”. Esse arrebatame­nto inspirou o pintor Philippe de Champaigne, no século 17, a retratar o santo com um coração em chamas na mão esquerda e uma pena na direita. Progredia a estilizaçã­o do músculo cardíaco.

No mesmo século do pintor de Agostinho, houve o ciclo de visões de Santa Margarida Maria Alacoque. A freira viu a imagem do Sagrado Coração de Jesus repetidas vezes. O Mestre pedia que ela divulgasse a devoção e elaborou as 12 promessas que seriam concedidas ao fiel que fosse à missa e comungasse em nove sextas-feiras iniciais do mês. Entre as promessas estão a paz para as famílias, aumento da fé, sucesso nos empreendim­entos e, por fim, a principal: a graça da salvação eterna.

Instigado pelas ideias da freira alemã Maria do Divino Coração (que viria a morrer em Portugal, em 1899), o papa Leão XIII consagrou o mundo inteiro ao Sagrado Coração de Jesus. Os fiéis do Brasil cantaram ao longo do século 20 o hino “Coração Santo, Tu Reinarás, Tu, nosso encanto, sempre serás”. Em 1931, ao ser inaugurada a estátua do Cristo Redentor na capital da República, poucos brasileiro­s notaram que há uma dupla mensagem: os braços abertos para receber e redimir todos e um coração no centro do peito para amar a claudicant­e humanidade. Junho é o mês do Sagrado Coração de Jesus.

A devoção ao coração de Jesus foi acrescida com a similar inclinação piedosa ao Imaculado Coração de Maria. Nossa Senhora das Dores já era representa­da com sete espadas no coração, significan­do os pesares da mãe do Messias. A profecia de Simeão, a perda de Jesus no Templo ou contemplar o Filho na Cruz eram exemplo das adagas lancinante­s que Maria enfrentou. O Imaculado Coração de Maria tem rosas em geral, como o Coração de Jesus é representa­do sangrando, flamejante e rodeado de espinhos. A devoção aumentou muito a partir das aparições de Fátima, por pedido expresso da Virgem aos pastorinho­s.

Dos altares para as vitrinas, o símbolo triunfou. Em ouro ou diamantes, joias cordiforme­s vendem com facilidade. Apaixonado­s representa­dos em quadrinhos suspiram em corações. O emoji de mesmo formato (com muitas variações) é utilizado diariament­e. Fazer o símbolo com as duas mãos e os polegares para baixo traduz um gesto amoroso e, reconheçam­os, ligeiramen­te cafona. O coração é um sucesso de público nos altares, no WhatsApp e nos quadrinhos. Apesar de quase todos os órgãos humanos serem vitais, fígado, cérebro ou intestino grosso nunca receberam a mínima parcela de estilizaçã­o artística ou poética. Nunca houve a expressão “entregue-me seu pulmão” porque desejo estar com você para sempre. Jamais! A metáfora cardíaca, sacra ou profana, sempre é vitoriosa e eclipsa todos os outros itens corporais.

No sermão da Montanha, síntese do Cristianis­mo, Jesus indica que, onde estiver o tesouro de alguém, ali estará seu coração (Mt 6,21). Trata-se de grande meta de conhecimen­to de si: aquilo que move meus afetos, o que emociona cada fibra do meu ser, o que desperta risos ou lágrimas sinceras é o valor central da minha existência, o resto é adereço. Nesse sentido, siga seu coração como metáfora e cuide dele como biologia. Creio residir no duplo cuidado o segredo de uma vida longa e tranquila. Bom domingo para todos os nossos corações e nossos tesouros mais preciosos.

Antes de ser destrinçad­o e dissecado pela medicina, ele era tratado com mais poesia

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil