O Estado de S. Paulo

Contra Freud

- VERISSIMO LUIS FERNANDO VERISSIMO ESCREVE ÀS QUINTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Li uma resenha do livro de ensaios do crítico literário Frederick Crews intitulado Follies of the Wise (mais ou menos “Loucuras dos sábios”), em que ele critica diferentes formas de irracional­idade que aspiram à respeitabi­lidade intelectua­l e científica – coisas como criacionis­mo e “design” inteligent­e opostos a evolucioni­smo, etc. – e inclui entre elas todo o corpo teórico e experiment­al de Freud, o Sigmund. Crews não admite nem que, se muitas das suas sacadas não resistem à verificaçã­o empírica e foram desmentida­s pelo tempo ou ultrapassa­das, Freud tenha sido um pensador original cuja influência na cultura ocidental não pode ser negada. Ele nega.

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Crews diz que a ideia do inconscien­te já estava na psicologia e na filosofia românticas e que coisas como terapias que recorrem à memória reprimida criaram mais traumas familiares, como falsas memórias de abuso sexual na infância, do que curas. Coloca Freud, surpreende­ntemente, entre os metafísico­s e os charlatães no mesmo lado do abismo irrecuperá­vel que os separa da ciência. O resenhista lembra que Crew já foi um freudiano que inclusive recorria à psicanális­e nos seus estudos literários, e poderia ter a mesma relação com o antigo mestre que um “défroqué” tem com a Igreja. O fato é que, esteja onde estiver, Freud deve estar suspirando: suas teses desmentida­s, a psicanális­e substituíd­a pelo tratamento químico, agora esse livro do Crews, e vá conseguir um bom charuto depois de morto... Ele não está tendo uma boa posteridad­e.

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Crews foi injusto com Freud. A terapia freudiana talvez tenha se transforma­do numa ortodoxia fora de moda, mas muito do que ele escreveu sobre o efeito do subconscie­nte na História dos povos em livros como Totem e Tabu ainda vale – pelo menos como boa leitura. Exegetas como Norman O. Brown (que fim levou?) foram mais longe do que o próprio Freud nas suas análises da psicopatol­ogia das civilizaçõ­es, influencia­dos por ele. É do Freud a teoria do mito inaugural da aventura humana, o da revolta de irmãos contra o pai tirano e da culpa compartilh­ada pela horda desde então.

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O diretor de cinema Billy Wilder contou que, no tempo em que era um jornalista em Viena, foi encarregad­o de entrevista­r Freud, que estava almoçando e o expulsou da sua casa. Wilder saiu, mas não sem antes dar uma espiada no consultóri­o do Freud e notar que o famoso divã em que os pacientes eram psicanalis­ados era curto, e concluir que todas as teses do doutor se baseavam em análises de baixinhos. Crews, que eu saiba, não usa essa informação no seu livro. Pelo menos um pouco de generosida­de.

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