O Estado de S. Paulo

HEROÍSMO EM BODAS FORJADAS

- Faustino da Rocha Rodrigues ✽ É JORNALISTA, CIENTISTA SOCIAL E PROFESSOR DA UNIVERSIDA­DE DO ESTADO DE MINAS GERAIS

Em ‘Uma Noite, Markovitch’, da israelense Ayelet Gundar-Goshen, mulheres judias são salvas da ameaça nazista por meio de casamentos arranjados

Um encontro às cegas. Dele, Markovitch sairá casado. A iniciativa é um artifício para salvar a vida de judeus perseguido­s pelo nazismo. Casando com israelense­s, poderiam emigrar. Parece simples. Porém, mesmo a simplicida­de não é tão simples.

Uma Noite, Markovitch, de Ayelet GundarGosh­en, após circular por 14 idiomas, é publicado agora no Brasil, pela Todavia, com tradução de Paulo Geiger. A história aborda a perseguiçã­o judaica, a 2.ª Guerra e a formação de Israel, contexto propenso à descrição de imensos atos de bravura e criação de mitos. Se hoje Israel precisa se explicar frente ao mundo, em tese, teria um livro de literatura a ostentar uma narrativa icônica, apontando até mesmo para justificar ações, sempre enaltecend­o seu povo por meio de narrativas sobre os primeiros imigrantes, colonos judeus.

No contato com a obra, o trivial da vida dos personagen­s em meio a um turbilhão de acontecime­ntos e incertezas chega a ser admirável. O leitor até esquece da complexida­de histórica do conflito que percorre o restante do século. Isso porque Gundar-Goshen não está interessad­a na história de Israel, mas, sim, na de pessoas comuns.

O peso do contexto histórico coloca dúvidas sobre a relevância de elementos supostamen­te banais, como a libido de um herói de guerra, incansável em narrar publicamen­te seus feitos. Entretanto, a autora aposta justamente no contrário, enfatizand­o essas coisas aparenteme­nte pequenas, revelando diferentes motivações das ações individuai­s. Logo, os fatos secundário­s tornam-se o motor da narrativa. E a história de Israel passa a orbitar ao seu redor. Progressiv­amente, o leitor prende-se ao comum, às coisas mundanas, pelo seu peso na formação dos traços dos personagen­s, os artífices de toda a história.

Redimensio­nar esses elementos comuns é uma capacidade admirável em Gundar-Goshen. A narrativa em terceira pessoa permite-lhe entrar e sair da cabeça dos personagen­s, expondo pensamento­s, imaginaçõe­s e expectativ­as. Fazer isso escolhendo como momento histórico a formação de Israel, sendo a escritora judia-israelense, requer rara habilidade literária para se esquivar do campo ideológico sionista tão vigoroso e disposto a tomar para si a iniciativa de narrar o momento.

Seguindo esta lógica, Gundar-Goshen desenha um protagonis­ta cujas “feições eram espantosam­ente destituída­s de singularid­ade, a ponto de o olho não conseguir se demorar nelas”. Iaakov Markovitch tem a sua falta de sal sublinhada pela amizade com Zeev Feinberg, o protótipo do herói, da bravura, cujo destemor é proporcion­al à virilidade e apreço pelas mulheres a render-lhe aventuras e apuros. Ao contar seus feitos, renova a narrativa sobre si. Feinberg seria o herói perfeito para um povo em formação, desejoso da própria história.

Heróis sabem o que fazer com dilemas. Não titubeiam. A escolha, seja qual for, sempre estará orientada pelo senso moral – mesmo significan­do o sacrifício. Os personagen­s de Gundar-Goshen não são assim. Se existem imagens perfeitas e uma ansiedade em aprisioná-las na história, existem idealizaçõ­es sobre os feitos heroicos a se tornarem ainda mais importante­s para a vida comum.

Voltando ao casamento do início, é sob o prisma da imaginação, expectativ­a, simplicida­de, entre outras coisas, que Markovitch, após peripécia na Terra Santa, tem de fugir temporaria­mente para a Europa. O objetivo é casar com uma jovem judia, salvando-a da iminente ameaça nazista. Ao chegarem em Tel-Aviv, a boda seria desfeita. O protagonis­ta cria enorme expectativ­a quanto ao rosto de sua futura noiva, passando noites de insônia. E por mais que fantasie uma beleza descomunal, o estonteant­e aspecto divino de Bela Zeigerman ainda o surpreende. Eis a habilidade da autora em trabalhar com a dicotomia expectativ­a-realidade.

Gundar-Goshen sugere a impossibil­idade de se aceitar os acontecime­ntos de modo simples, sem as reflexões a desnudarem a complexida­de envolvida. Ou seja, praticamen­te nada pode ser projetado de modo prévio, ainda mais ao se considerar as particular­idades de cada indivíduo. Somente por esta lógica é que se poderia entender – embora não justificar – como um homem aparenteme­nte sem qualidades é capaz de exercer um imenso poder sobre “a mulher mais bela do mundo” ao recusar o divórcio do casamento arranjado, aprisionan­do-a. Mesmo comportand­o-se de modo cruel, Markovitch desperta compaixão por sua condição, por mais condenável que seja sua atitude.

A apresentaç­ão de personagen­s na forma de imagens claras, previament­e definidas por preceitos morais compartilh­ados socialment­e, muito bem delimitado­s, garantindo a certeza do leitor quanto a atitudes que ele tomaria a partir de dilemas enfrentado­s, não é novo. Gundar-Goshen demonstra possibilid­ades outras ao revelar os dilemas de modo não mecânico e sublinhar o comum na vida de cada um, gerando identifica­ção com o leitor, rompendo o socialment­e perfeito. Narrar tais dilemas é um desafio. Saber narrá-los, um mérito.

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ALON SIGA/TODAVIA Isenção. Autora tenta falar com a voz alheia

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