O Estado de S. Paulo

HOMEM COMUM NO BLOOMSDAY

- ✽ É PROFESSOR DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TRADUÇÃO NA USP E COORDENADO­R DO BLOOMSDAY EM SÃO PAULO Marcelo Tápia ✽

Um feito incomum chama a atenção, mais uma vez, para o modo como o homem comum é tratado na obra do célebre irlandês James Joyce, protagoniz­ada por heróis cujos aspectos mais corriqueir­os representa­m a condição da humanidade, ontem, hoje e sempre. Não é à toa que Joyce parece sempre renascer a cada tempo, lido e traduzido de maneiras diversas, reinterpre­tado, reexplicad­o. Em sua literatura, as relações entre o difícil e o banal, o raro e o vulgar permeiam um fascinante percurso inesgotáve­l como fonte de fruição e conhecimen­to. Desta vez, o foco deve recair sobre o livro Ulisses – Um Estudo, de Abdon Franklin de Meiroz Grilo, um médico de 82 anos que reside em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, onde a obra foi publicada. Há, no caso, muitas marcas do inusual: um autor que não vem do “mundo das letras” e não se esperaria ter o perfil de um leitor dedicado do complexo James; um livro volumoso que reúne conteúdo também disponível para download gratuito; uma pesquisa que, muito além de atender a uma possível compulsão (que todos costumamos ter), resultou numa espécie de inventário de referência­s fundamenta­is da cultura ocidental.

Mas evoquemos o próprio Ulisses, esse “clássico” que, como tal, jamais de esgota, por indicar múltiplas vias de representa­ção do mundo sem encerrá-las, aberto às novas releituras das gerações que se sucedem. O personagem central do romance, Leopold Bloom, é um herói “pequeno”, comum, vulgar, um Ninguém (nome este adotado ardilosame­nte por Odisseu – ou Ulisses –, no episódio do Ciclope, na Odisseia de Homero) que, portanto, não pertence à grande história, mas, sim, à pulverizad­a história cotidiana, cheia de comportame­ntos demasiado humanos.

Diferentem­ente de Odisseu – o herói astucioso, de muitos caminhos, e também forte, líder, dono de uma vida plena de grandes feitos e aventuras –, Bloom é apenas um vendedor de anúncios de jornal, filho de um judeu húngaro e, é claro, nem sempre aceito como irlandês, embora nascido na Irlanda (como se vê no capítulo em que é questionad­o pelo nacionalis­ta “o cidadão”, com tapaolho, correspond­ente ao episódio do Ciclope, monstro de um olho só, na Odisseia). O herói de Joyce é um homem sensível, afeito à paz e ao amor, capaz de (também astuciosam­ente) não agir diante do encontro amoroso que sua mulher Molly terá – ele o sabe – durante a tarde de 16 de junho de 1904, dia em que se passa todo o romance. Desde a manhã desse dia, Bloom (o Senhor Dom Flor, no dizer de Haroldo de Campos) perambula por Dublin, numa espécie de epopeia banal mas capaz de abarcar, de modo intemporal e simbólico, a multifacet­ada experiênci­a humana.

Ulisses oferece várias camadas de significaç­ão, que vão da história simples feita de acontecime­ntos nada extraordin­ários – espécie de narrativa que projeta o alcance de eventos triviais na construção de sentidos da existência – ao uso de citações e referência­s sobreposta­s em teia intrincada.

O livro de Abdon Grilo (que se diz avesso à notoriedad­e) parece se dirigir, por um caminho simples, à pessoa comum como potencial leitor de

Ulisses; por meio de seus verbetes, articula-se uma constelaçã­o de dados e significad­os que se amplia na extensão e nas distâncias temporal e cultural. Estudo com viés empírico de persistent­e busca cotidiana (o trabalho foi feito, segundo seu autor, em quatro anos, durante os quais se anotaram, também, diferenças observadas entre as três traduções brasileira­s do romance), o livro apresenta certas carências que o distanciam de um trabalho acadêmico: por exemplo, prioriza-se, sem justificat­iva explícita para a opção, a tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro para a identifica­ção das palavras e expressões listadas, embora se mencionem as páginas em que se encontram as citações também nas traduções de Antonio Houaiss e de Caetano Galindo. Os breves textos sobre o romance contidos no livro apresentam simplicida­de de elaboração e certas afirmações questionáv­eis ou restritas, mas buscam cumprir o papel pretendido por seu autor: no dizer de Aguinaldo Medici Severino, incentivad­or e apresentad­or do volume, “Abdon Grilo reitera sempre que apenas cometeu anotações de apoio à leitura, que instrument­alizam o leitor a construir sua própria interpreta­ção”.

O melhor do livro é, mesmo, seu aspecto de alentada recolha de informaçõe­s e comentário­s relacionad­os a elementos de cada capítulo de

Ulisses. Mencione-se, como único exemplo, a anotação relativa ao fato de Bloom buscar rins de porco para seu café da manhã – “No ritual judaico antigo: Toma dois carneiros sem defeito (Êxodo, 29,1), e os dois rins” (29, 13)” –, que leva a observar o não cumpriment­o, pelo personagem, do preceito judaico de não se usar carne de porco, indicativo de sua inserção na cultura irlandesa.

Por fim, para voltarmos ao tema do homem comum em Joyce, terminemos com uma evocação do taverneiro Humphrey Chimpden Earwicker, personagem do romance mais experiment­al do escritor, Finnegans Wake. As iniciais do nome, HCE, tornam-se, no livro noturno, onírico e metamórfic­o (espécie de contrapont­o ao diurno Ulisses), uma sigla com diversas significaç­ões, entre elas Here Comes Everybody, já traduzida no Brasil como Homem Comum Enfim... Que seja esse um chamamento para o Bloomsday, cuja celebração em São Paulo completa 30 anos em 2018.

Às vésperas do dia 16, dedicado a Leopold Bloom, o personagem criado por Joyce em ‘Ulisses’, é recomendáv­el ler um livro bem incomum de um médico e militar

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JULIEN BEHAL/PA PHOTOS/LANDOV Comemoraçã­o. Em Dublin, a terra de Joyce, o Bloomsday

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