HOMEM COMUM NO BLOOMSDAY
Um feito incomum chama a atenção, mais uma vez, para o modo como o homem comum é tratado na obra do célebre irlandês James Joyce, protagonizada por heróis cujos aspectos mais corriqueiros representam a condição da humanidade, ontem, hoje e sempre. Não é à toa que Joyce parece sempre renascer a cada tempo, lido e traduzido de maneiras diversas, reinterpretado, reexplicado. Em sua literatura, as relações entre o difícil e o banal, o raro e o vulgar permeiam um fascinante percurso inesgotável como fonte de fruição e conhecimento. Desta vez, o foco deve recair sobre o livro Ulisses – Um Estudo, de Abdon Franklin de Meiroz Grilo, um médico de 82 anos que reside em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, onde a obra foi publicada. Há, no caso, muitas marcas do inusual: um autor que não vem do “mundo das letras” e não se esperaria ter o perfil de um leitor dedicado do complexo James; um livro volumoso que reúne conteúdo também disponível para download gratuito; uma pesquisa que, muito além de atender a uma possível compulsão (que todos costumamos ter), resultou numa espécie de inventário de referências fundamentais da cultura ocidental.
Mas evoquemos o próprio Ulisses, esse “clássico” que, como tal, jamais de esgota, por indicar múltiplas vias de representação do mundo sem encerrá-las, aberto às novas releituras das gerações que se sucedem. O personagem central do romance, Leopold Bloom, é um herói “pequeno”, comum, vulgar, um Ninguém (nome este adotado ardilosamente por Odisseu – ou Ulisses –, no episódio do Ciclope, na Odisseia de Homero) que, portanto, não pertence à grande história, mas, sim, à pulverizada história cotidiana, cheia de comportamentos demasiado humanos.
Diferentemente de Odisseu – o herói astucioso, de muitos caminhos, e também forte, líder, dono de uma vida plena de grandes feitos e aventuras –, Bloom é apenas um vendedor de anúncios de jornal, filho de um judeu húngaro e, é claro, nem sempre aceito como irlandês, embora nascido na Irlanda (como se vê no capítulo em que é questionado pelo nacionalista “o cidadão”, com tapaolho, correspondente ao episódio do Ciclope, monstro de um olho só, na Odisseia). O herói de Joyce é um homem sensível, afeito à paz e ao amor, capaz de (também astuciosamente) não agir diante do encontro amoroso que sua mulher Molly terá – ele o sabe – durante a tarde de 16 de junho de 1904, dia em que se passa todo o romance. Desde a manhã desse dia, Bloom (o Senhor Dom Flor, no dizer de Haroldo de Campos) perambula por Dublin, numa espécie de epopeia banal mas capaz de abarcar, de modo intemporal e simbólico, a multifacetada experiência humana.
Ulisses oferece várias camadas de significação, que vão da história simples feita de acontecimentos nada extraordinários – espécie de narrativa que projeta o alcance de eventos triviais na construção de sentidos da existência – ao uso de citações e referências sobrepostas em teia intrincada.
O livro de Abdon Grilo (que se diz avesso à notoriedade) parece se dirigir, por um caminho simples, à pessoa comum como potencial leitor de
Ulisses; por meio de seus verbetes, articula-se uma constelação de dados e significados que se amplia na extensão e nas distâncias temporal e cultural. Estudo com viés empírico de persistente busca cotidiana (o trabalho foi feito, segundo seu autor, em quatro anos, durante os quais se anotaram, também, diferenças observadas entre as três traduções brasileiras do romance), o livro apresenta certas carências que o distanciam de um trabalho acadêmico: por exemplo, prioriza-se, sem justificativa explícita para a opção, a tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro para a identificação das palavras e expressões listadas, embora se mencionem as páginas em que se encontram as citações também nas traduções de Antonio Houaiss e de Caetano Galindo. Os breves textos sobre o romance contidos no livro apresentam simplicidade de elaboração e certas afirmações questionáveis ou restritas, mas buscam cumprir o papel pretendido por seu autor: no dizer de Aguinaldo Medici Severino, incentivador e apresentador do volume, “Abdon Grilo reitera sempre que apenas cometeu anotações de apoio à leitura, que instrumentalizam o leitor a construir sua própria interpretação”.
O melhor do livro é, mesmo, seu aspecto de alentada recolha de informações e comentários relacionados a elementos de cada capítulo de
Ulisses. Mencione-se, como único exemplo, a anotação relativa ao fato de Bloom buscar rins de porco para seu café da manhã – “No ritual judaico antigo: Toma dois carneiros sem defeito (Êxodo, 29,1), e os dois rins” (29, 13)” –, que leva a observar o não cumprimento, pelo personagem, do preceito judaico de não se usar carne de porco, indicativo de sua inserção na cultura irlandesa.
Por fim, para voltarmos ao tema do homem comum em Joyce, terminemos com uma evocação do taverneiro Humphrey Chimpden Earwicker, personagem do romance mais experimental do escritor, Finnegans Wake. As iniciais do nome, HCE, tornam-se, no livro noturno, onírico e metamórfico (espécie de contraponto ao diurno Ulisses), uma sigla com diversas significações, entre elas Here Comes Everybody, já traduzida no Brasil como Homem Comum Enfim... Que seja esse um chamamento para o Bloomsday, cuja celebração em São Paulo completa 30 anos em 2018.
Às vésperas do dia 16, dedicado a Leopold Bloom, o personagem criado por Joyce em ‘Ulisses’, é recomendável ler um livro bem incomum de um médico e militar