O Estado de S. Paulo

ATUALIZAND­O A INVENÇÃO DE GUTEMBERG

Enquanto o mercado de arte lucra com leilões online, os vendedores de livros raros e antiguidad­es ainda tentam se adaptar à era da internet

- Scott Reyburn

Johannes Gutenberg ou Tim Berners-Lee? O texto impresso ou a internet? Não há nenhuma maneira de saber qual deles influencia mais, mas hoje não se discute que as pessoas passam mais tempo navegando na internet do que lendo um texto impresso. E isto tem inúmeras repercussõ­es, positivas e negativas. Por exemplo, o velho sistema de compra e venda de livros raros.

A Rare Books London é um conjunto de leilões, feiras, palestras e tours que acontecem entre maio e junho em Londres. A “jóia da coroa” do evento, de acordo com seu website é a A.B.A Rare Book Fair, em sua 61.ª edição, com a participaç­ão de 175 marchands de livros. Mais de um terço dos expositore­s são de fora da Grã-Bretanha.

Depois de 19 anos no centro de exposições Olympia, um prédio da era vitoriana a oeste de Londres, a feira mudou para Battersea Evolution, um local mais moderno, do lado sul do rio Tâmisa. Foi inaugurada por David Attenborou­gh, aclamado narrador de séries da BBC como Life on Earth, The Living Planet e Blue Planet.

“Olympia estava associada a coisa velha”, disse Andrea Mazzocchi, especialis­ta que trabalha na Bernard Quaritch Antiquaria­n Books, fundada em 1847. “Precisamos nos afastar de pessoas que acham que os velhos livros são empoeirado­s e chatos”, acrescento­u. Mas essa feira de livros raros ainda está muito distante da pompa de feiras de arte de luxo como Frieze ou Masterpiec­e. O tráfego congestion­ado por causa da sempre popular Chelsea Flower Show, próximo dali, tornou difícil o acesso à feira.

Sophie Schneidema­n, livreira especializ­ada em livros impressos por particular­es, estava oferecendo uma das 500 cópias em papel da Doves Bible, uma Bíblia com as letras capitulare­s em vermelho escritas pelo calígrafo Edward Johnston, publicada por Cobden-Sanderson e Emery Walker da Doves Press, em Hammersmit­h, a oeste de Londres, entre 1903 a 1905. Reverencia­do por muitos como a realização suprema da tipografia artesanal, o livro custava 15 mil libras (R$ 78.500). Sophie Schneidema­n disse ter vendido meia dúzia de artigos valendo entre US$ 66 e US$ 13.000, mas nenhuma edição da Bíblia da Dover. “Não havia clima e nem entusiasmo. Muitos dos clientes mais antigos não conseguira­m chegar ao local”, ela lamentou.

Mas outros expositore­s se mostraram mais otimistas com relação ao novo espaço. Uma vez evitado o confronto com o Chelsea Flower Show e quando uma nova parada de metrô for inaugurada próximo dali, em 2020, o evento será um sucesso, disseram eles.

“Com certeza é melhor do que o local antigo”, disse Bernard Shapero, expositor londrino especializ­ado em livros ilustrados raros.

O comércio de livros raros se defronta com muitos desafios.

Ao contrário de colecionad­ores de livros como John Pierpont Morgan e Andrew Carnegie, os super-ricos de hoje preferem coleções de arte em vez de biblioteca­s. A arte se tornou um investimen­to alternativ­o globalizad­o que em 2017 gerou um lucro médio de 21%, segundo o mais recente informe da corretora Knight Frank. Livros raros não figuram na cesta de “investimen­tos de luxo” da corretora.

Mas vendedores e leiloeiros tendem a se referir aos livros como “reserva de valor”, refletindo uma estrutura de preço e uma base de clientes geralmente estáticas que não entusiasma investidor­es alternativ­os. Como resultado, a feira de livros raros depende de colecionad­ores e instituiçõ­es muito bem informados – e marchands amigos.

Mas houve vendas na A.B.A Fair como a realizada pela Aquila Books, de Calgary, no Canadá, de uma primeira edição de 1871 do livro de Charles Darwin, A Descendênc­ia do Homem, em que o autor usou a palavra “evolução” pela primeira vez para se referir à sua teoria. O livro foi comprado por Attenborou­gh por US$ 5.340.

Aquila Books, especializ­ada em livros de exploração e evolução, contabiliz­ou 30 mil libras (R$ 157 mil) em vendas na feira, de acordo com seu fundador Cameron Treleaven. “Estou feliz com o resultado”, disse ele, explicando que as feiras representa­m 40% das suas vendas anuais, com 35% gerados por meio de transações online.

“A chegada da internet foi o momento definidor da minha carreira”, disse Treleaven. “Ela nos permitiu encontrar clientes que nunca soubemos que existiam”, comemora.

Como no mercado de arte, os leilões ao vivo são outro canal importante para venda de livros raros. Mas, ao contrário da arte contemporâ­nea, os livros costumam ser vendidos de acordo com estimativa­s pré-vendas.

Na quarta-feira a Bonhams levou a leilão a biblioteca de história natural do Wassenaar Zoo da Holanda. Fundado em 1937 por Pieter W. Louwman, pai do copropriet­ário da Bonhams, Evert Louwman, o zoo foi fechado em 1985. A biblioteca, compreende­ndo 234 obras, abrange alguns dos livros de ornitologi­a mais suntuosame­nte ilustrados do século 19.

O mais valioso da coleção é uma primeira edição, em sete volumes, de The Birds of Australia, de John Gould, lançado em 1849. Esta cópia também incluiu três dos cinco volumes suplementa­res da obra, ilustrados com mais de 600 litografia­s coloridas à mão, baseadas nos desenhos da mulher do ornitólogo, Elizabeth Gould. Ainda é considerad­o o mais amplo trabalho sobre o assunto – a descoberta por Gould de mais de 300 novas espécies durante sua pesquisa na Austrália entre 1838 e 1840. A coleção The Birds of Australia foi vendida por 187.500 libras, incluindo comissões (cerca de R$ 979 mil).

“Os livros não são como a arte contemporâ­nea. Eles não geram uma enorme empolgação e não são vendidos com rapidez”, afirmou Matthew Haley, diretor do departamen­to de livros da Bonhams. “O negócio é lento e estável”.

Birds of Australia, de Gould, como a Doves Bible ou a Bíblia de Gutenberg são trabalhos de arte excepciona­is, mas infelizmen­te, como são livros, não têm a força de uma pintura moderna ou contemporâ­nea renomada. A sutileza dos livros como símbolo de status também não atrai os novos ricos que compram arte.

Então, como o comércio de livros raros pode prosperar no século 21?

É justamente aí que entra a invenção de Tim Berners-Lee. Os marchands de livros têm se queixado de que no caso de muitos compradore­s, navegar na internet substituiu a busca nas livrarias, o que ocasionou o fechamento de inúmeras livrarias de livros usados, mas a internet permite a eles mostrar seus livros para um novo público ligado mais no visual.

Bernard Quaritch, por exemplo, levou uma única folha da Bíblia de Gutenberg impressa em 1450 para a feira da A.B.A.A em Nova York e a A.B.A em Londres, avaliada em 100 mil libras (R$ 523 mil). Não conseguiu vender, mas ela foi colocada na conta no Instagram da companhia e desde então a postagem já recebeu 122 curtidas.

O velho livro empoeirado está evoluindo. Paulatinam­ente.

 ?? IONA WOLFF/ANTIQUARIA­N BOOKSELLER­S ASSOCIATIO­N ?? Estande. Vendedora na 61.ª edição da feira de livros raros da ABA, em Londres
IONA WOLFF/ANTIQUARIA­N BOOKSELLER­S ASSOCIATIO­N Estande. Vendedora na 61.ª edição da feira de livros raros da ABA, em Londres
 ?? IONA WOLFF/ANTIQUARIA­N BOOKSELLER­S ASSOCIATIO­N ?? Evento. A 61.ª edição da feira de livros raros da ABA, teve 175 expositore­s em Londres
IONA WOLFF/ANTIQUARIA­N BOOKSELLER­S ASSOCIATIO­N Evento. A 61.ª edição da feira de livros raros da ABA, teve 175 expositore­s em Londres
 ?? BERNARD QUARITCH ?? Imprensa. Página avulsa da Bíblia de Gutemberg, impressa em 1450
BERNARD QUARITCH Imprensa. Página avulsa da Bíblia de Gutemberg, impressa em 1450
 ?? BONHAMS ?? Natureza. Ilustração do biólogo John Gould
BONHAMS Natureza. Ilustração do biólogo John Gould
 ?? SOPHIE SCHNEIDEMA­N RARE BOOKS ?? Capitular. Página da Bíblia da Doves à venda
SOPHIE SCHNEIDEMA­N RARE BOOKS Capitular. Página da Bíblia da Doves à venda

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