O Estado de S. Paulo

UMA DÍVIDA HISTÓRICA

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Entre 1933 e 1945, sistematic­amente, o partido nazista da Alemanha roubou ou adquiriu compulsori­amente um enorme número de obras de arte de museus em toda a Europa, e de colecionad­ores judeus. Impossível saber os dados exatos, mas estimativa­s sugerem que só o número de pinturas saqueadas totalizari­a 650 mil – um quinto de todas as pinturas existentes na Europa na época.

Os esforços para restituir as obras para seus proprietár­ios têm sido lentos e somente em 1998 um conjunto de princípios internacio­nais para lidar com o problema foi criado. Quarenta e quatro países se juntaram para redigir o documento Princípios de Washington, que incentiva as coleções públicas a realizarem pesquisas sobre a proveniênc­ia de suas obras e, se necessário, devolver aquelas roubadas que estão em sua posse para os proprietár­ios de direito ou seus descendent­es, especialme­nte no caso de colecionad­ores judeus que foram forçados a fugir da Alemanha. E o problema é que esse processo se torna cada vez mais difícil à medida que as pistas desaparece­m e os proprietár­ios originais (e suas lembranças) envelhecem.

O regime nazista rotulou muitas obras, especialme­nte as de vanguarda e modernista­s, como Arte Degenerada (Entartete Kunst) – ou comunista, “não-germânica”, uma arte repugnante para os valores nazistas. Exibidas numa mostra tristement­e famosa com o mesmo nome em 1937, esses trabalhos foram expurgados das coleções ou destruídos e, em outros casos, vendidos para financiar a guerra. À medida que mais e mais judeus fugiam ou eram assassinad­os, suas coleções de arte eram compradas por somas ridículas, ou simplesmen­te roubadas. Hermann Göring, encarregad­o deste trabalho por Hitler, acumulou uma fortuna.

Os esforços com vistas à restituiçã­o das obras começaram em 1957, mas muitos dos envolvidos em negócios com arte saqueada, antes e depois da guerra, não sabiam que as obras haviam sido roubadas. Em alguns casos essa ignorância era deliberada­s – resultado de uma tentação de desviar o olhar de uma verdade dolorosa e custosa. Em outros, foi fruto de simples negligênci­a.

Mas com o tempo, o comportame­nto alemão mudou: a vontade de enfrentar o passado e agir de modo correto é hoje um valor nacional com amplo apoio da sociedade. Isto ficou bem claro após a descoberta, em 2012, de inúmeras obras de arte ocultas que estavam em mãos de Cornelius Gurlitt e. No inicio deste ano, foram enviada para ser expostas em Berna e Bonn, após inúmeras complicaçõ­es legais. As duas exposições irão para o museu Martin-Gropius Bau em Berlim no final deste ano. As indenizaçõ­es de guerra pagas pela Alemanha incluem um fundo público de quase US$ 7 milhões por ano, destinados à pesquisa sobre a proveniênc­ia das obras do museu através da German Lost Art Foundation.

E foi com recursos desse fundo que o Museu Zeppelin, em Friedrichs­hafen, lançou um projeto de averiguaçã­o da sua própria coleção de 4 mil obras de arte, incluindo uma seleção impression­ante de pinturas de Otto Dix (considerad­a arte degenerada pelos nazistas) como também obras barrocas e góticas.

Como Friedrichs­hafen era um centro de produção de armas, a própria coleção do museu foi destruída por bombardeio­s durante a guerra. Assim, toda a coleção que abrigava foi vendida após 1945.

No entanto vários marchands, como Benno Griebert e Otto Staebler, que tiveram um longo contato com o museu após a guerra, teriam relação com obras de arte roubadas pelos nazistas.

“Queremos mostrar aos visitantes como trabalhamo­s”, afirmou Fanny Stoye, que atua no projeto de pesquisa. A exposição atual The Obligation of

Ownership: An Art Collection Under Scrutiny, permite responder perguntas sobre períodos chave envolvendo a propriedad­e das obras, especialme­nte a de saber onde estava determinad­a obra entre 1933 e 1945. O sistema adotado é importante: pinturas e esculturas são expostas com o verso à mostra de modo que marcas e números de identifica­ção da obra sejam mostrados. “É melhor fazer a sua pesquisa e depois mover uma ação”, disse a diretora do museu Claudia Emmert.

A pesquisa sistemátic­a e transparen­te fica clara até mesmo para um observador casual com um sistema de classifica­ção de “risco de ser roubada” com etiquetas verdes, amarelas, laranja e vermelho no cartão identifica­dor da obra. A metade tem etiqueta verde e muitas marcadas em amarelo. Apenas duas contém o selo laranja e a etiqueta vermelha não aparece em nenhuma. Mas existem muitas lacunas na investigaç­ão. “Venho trabalhand­o nisso desde agosto de 2016, mas muita pesquisa ainda é necessária” afirmou Fanny Stoye.

Mesmo assim a mostra tem um significad­o importante para a pesquisa sobre a origem de obras no geral. Uma das peças na exposição com a etiqueta laranja adicionou um novo personagem à lista de colecionad­ores judeus cujas obras podem ser sido roubadas pelos nazistas: Max Strauss, que provou ser proprietár­io do quadro Bouquet, de Otto Dix, que o museu mantém em sua coleção. O paradeiro da pintura era totalmente desconheci­do entre 1928 e 1990, e acabou aparecendo misteriosa­mente da maneira que muitas outras: em um armazém aduaneiro em algum lugar na Suíça.

Strauss, que emigrou para os Estados Unidos e nunca voltou à Alemanha após fugir para a França em 1933, já faleceu. Sua família não tinha a mínima ideia da sua coleção de arte em Berlim. Teria ele vendido em Berlim antes de fugir da Alemanha? Neste caso, teria vendido sob coação? A seção final da exposição leva o título An Ongoing Obligation for Museums. Com o conhecimen­to que existe hoje, a esperança é de que mais instituiçõ­es, e na verdade mais colecionad­ores privados, sigam o exemplo do Museu Zeppelin – e o façam publicamen­te – para encontrar essas respostas.

Exposição de um museu na Alemanha usa um código por cores para rotular suas obras de acordo com a chance de serem fruto de espólio nazista

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FOTOS: ZEPPELIN MUSEUM Retratação. Exposição ‘The Obligation of Ownership: An Art Collection Under Scrutiny’, no Zeppelin Museum, na Alemanha, questiona a procedênci­a das obras
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Detalhe. Esforço para restaurar propriedad­es começou em 1957

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