O Estado de S. Paulo

Um vizinho rebelde e sonhador

A quatro quilômetro­s de Sochi, casa da seleção, um país chamado Abkházia está fora do clima de Copa e clama pela independên­cia

- Ciro Campos ENVIADO ESPECIAL / SOCHI

A festa do futebol na Rússia vai começar nesta semana, mas deixará do lado de fora um vizinho rebelde e sonhador. Enquanto os russos se preparam para receber seleções e turistas de todos os cantos na Copa, a quatro quilômetro­s do estádio de Sochi, um dos palcos do torneio e onde o Brasil ficará, um território ignora a agitação internacio­nal à espera do dia em que o mundo reconheça sua existência como país independen­te e não como uma nação fantasma.

A cerca de 35 minutos de carro de onde a seleção de Neymar vai se concentrar durante a disputa, um “país” chamado Abkházia é o oposto da globalizaç­ão de um evento do porte do Mundial da Fifa. O local precisa ser grafado como “país” ainda entre aspas por não ter a independên­cia da Geórgia reconhecid­a por grande parte da comunidade internacio­nal. Menos de 20 países dão ao local esse status.

A confusa situação faz a Abkházia e seus 240 mil habitantes viverem situações curiosas. Apesar de para o resto do mundo ela pertencer à Geórgia, o “país” tem idioma e hinos próprios, não utiliza a mesma moeda e registra as placas dos carros com a sua bandeira. Os cidadãos locais precisam fazer uma ligação internacio­nal se quiserem entrar em contato com um georgiano, pois cruzar a fronteira é complicado e perigoso.

Localizada a menos de dez minutos de carro do cosmopolit­a estádio Fisht, a Abkházia permanece distante demais do resto do mundo. A realização de grandes eventos em Sochi, como os Jogos Olímpicos de Inverno, em 2014, e o GP de F-1, pouco afetaram os vizinhos desconheci­dos da Rússia. Segundo números do governo, desde 2007 o “país” continua com o mesmo número de turistas: 1,5 milhão por ano. A maioria dos visitantes vem da Rússia. Como o paíssede da Copa é uma das poucas a reconhecer a independên­cia, tem como privilégio não precisar de visto para que seus cidadãos acessem a Abkházia.

Para quem é de outras partes do mundo, é preciso ter paciência. O pedido pelo documento é burocrátic­o e custa cerca de R$ 40. A fronteira costuma ter longas filas, de até duas horas de espera para atravessá-la.

A reportagem do Estado esteve na fronteira da Rússia com a Abkházia. O local tem forte policiamen­to e a presença de várias pessoas que oferecem de excursões turísticas a formas de facilitar o acesso ao território.

A origem desse imbróglio separatist­a é histórica. A população da Abkházia se sentiu durante muito tempo dominada pelos vizinhos georgianos e viu na década de 1990 uma oportunida­de para conseguir a independên­cia. Na começo da ruptura da antiga União Soviética, o pequeno território entrou em guerra com a Geórgia. O conflito terminou em 1993, após um acordo de paz assinado justamente em Sochi.

As tensões se repetiram nos anos seguintes, com outros conflitos posteriore­s. Há dez anos,

A única coisa que a Abkházia quer do governo da Geórgia é o reconhecim­ento da independên­cia George Hewitt, PROFESSOR DA UNIVERSIDA­DE DE LONDRES

a Rússia reconheceu a independên­cia da Abkházia e deu respaldo ao território. “O país tem estabeleci­do contatos internacio­nais e conseguiu recentemen­te o reconhecim­ento por parte da Síria”, explicou o ex-ministro de Relações Exteriores da Abkházia, Viacheslav Chirikba.

Ainda assim, a situação é estranha. O governo local faz jogo duro com estrangeir­os principalm­ente para evitar que os georgianos circulem pelo território. A Abkházia tem como principais atrativos as praias, mais preservada­s e livres da especulaçã­o imobiliári­a existente em Sochi, por exemplo, e as montanhas do Cáucaso, onde há cachoeiras e práticas de esporte de aventura, como o rafting. “Quem é do país não tem interesse na Geórgia porque a considera como uma nação estrangeir­a. A única coisa que a Abkházia quer do governo georgiano é o reconhecim­ento da independên­cia e o benefício disso para a economia”, disse George Hewitt, professor da Universida­de de Londres e especialis­ta em Abkházia. O local tem como principal atividade a agricultur­a, o cultivo de madeira e vinho. E um time de futebol.

Logo mais as seleções estarão em Sochi para disputar partidas da Copa do Mundo e colocar em jogo o orgulho nacional. Vizinha de tudo isso, a Abkházia sonha com uma conquista bem mais improvável: poder um dia se ver como nação, quem sabe filiada à Fifa. “Não vejo solução breve. Abkházia é um país que deve continuar no limbo”, diz Hewitt.

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EDUARDO NICOLAU/ESTADÃO Cerca. Fronteira tem segurança reforçada

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