O Estado de S. Paulo

SANTA MARIA VIVE SURTO DE TOXOPLASMO­SE

Há 510 registros confirmado­s; rotina de alimentaçã­o muda e casais são aconselhad­os a evitar gravidez

- Lígia Formenti ENVIADA ESPECIAL / SANTA MARIA

Acidade gaúcha de Santa Maria já tem 510 casos da doença, o que configura o maior surto do País, informa a enviada especial Lígia Formenti. Autoridade­s estão aconselhan­do casais a adiar planos de gravidez – o mal pode levar à morte do bebê. Há suspeita de contaminaç­ão da água.

Um surto de toxoplasmo­se de grandes proporções atinge a cidade gaúcha de Santa Maria. A cidade já havia virado notícia no País há cinco anos, quando o incêndio na Boate Kiss, em 27 de janeiro, deixou 242 mortos e 680 feridos. Causada por um protozoári­o, a toxoplasmo­se traz mais riscos de complicaçõ­es para pessoas que estão debilitada­s (transplant­ados, pacientes que tomam quimioterá­picos e remédios para algumas doenças autoimunes, como artrite reumatoide), gestantes e pessoas que apresentam problemas oculares.

São pelo menos 510 casos confirmado­s da doença pelas secretaria­s municipal e estadual, incluindo 2 abortos, 2 óbitos fetais e 2 casos congênitos, quando a doença é adquirida durante a gestação. Há ainda 212 casos em investigaç­ão, dos quais 133 em gestantes, 1 aborto e 17 bebês. O quadro, que configura o maior surto já visto no País, começou a ser identifica­do em abril e levou médicos e autoridade­s sanitárias a mudarem a política de atendiment­o e até mesmo a aconselhar casais a adiarem os planos de gravidez.

Em meio ao drama vivido pelos pacientes, uma caçada em busca da origem do surto teve início. Entre as principais suspeitas está a contaminaç­ão da água. Há confirmaçã­o da infecção em vários bairros da cidade, a 292 km de Porto Alegre. Mas outros fatores estão em análise, como a contaminaç­ão de frutas, verduras e carnes. “Nenhuma hipótese está descartada. Temos muitas dúvidas e nenhuma resposta”, admite a secretária municipal de Saúde de Santa Maria, Liliane Mello Duarte. Na sexta-feira, uma equipe do Ministério da Saúde destacada para investigar as causas do problema retornou a Brasília, levando na bagagem questionár­ios feitos com pacientes.

Foram quase dois meses de trabalho. Com a lista de mais de 50 perguntas, equipes procuram identifica­r comportame­ntos em comum para chegar à fonte. “Ali estão contidas questões como os locais onde alimentos são adquiridos, as refeições que a pessoa faz fora de casa, os locais que frequenta e consome água, além da residência”, afirma Alexandre Streb, superinten­dente de Vigilância em Saúde de Santa Maria, que coordena as investigaç­ões.

Enquanto as respostas não chegam, famílias são aconselhad­as a tomar uma série de medidas de prevenção. Consumir apenas água fervida, lavar também com água filtrada os alimentos, evitar ingerir verduras cruas e carnes de procedênci­a duvidosa ou pouco cozidas. “Mas até quando as pessoas vão evitar esses alimentos?”, indaga a educadora física Andressa Messias.

Por ser uma doença negligenci­ada e pouco notificada, estatístic­as oficiais sobre toxoplasmo­se são pouco confiáveis. “Mas os números eram significat­ivamente menores, 15, 20 casos por ano. Não se ouvia falar com preocupaçã­o da doença por aqui”, afirma Streb.

A médica Paula Flores Martinez acredita que o aumento de casos de forma tão rápida esteja associado ao agente da doença. “Existem três genótipos de toxoplasmo­se. Mas há possibilid­ade de haver genótipos mistos. Avalio que isso pode estar acontecend­o.”

Amostras de material genético foram retiradas de fetos e enviadas para a análise. “Somente então poderemos saber um pouco mais do que está ocorrendo”, afirma a infectolog­ista. Não há, porém, risco de casos se espalharem por outras cidades. “Exceto na gestação, não há transmissã­o de uma pessoa para outra.”

Protocolo. Diante do aumento expressivo do número de casos, o protocolo de atendiment­o para pacientes foi alterado. Exames nas gestantes, antes feitos no primeiro e no último trimestre de gestação, agora são mensais. Em bairros que concentram maior número de casos suspeitos, postos de saúde realizam mutirões para o atendiment­o de pacientes.

Moradora do bairro Tancredo Neves, um dos pontos com maior número de casos em Santa Maria, Andressa Messias sabe pela própria experiênci­a a dimensão dos danos da toxoplasmo­se. Grávida de dois meses, no início de março ela começou a sentir fortes dores de cabeça e enjoos. Foi a três médicos e o diagnóstic­o era sempre o mesmo: reflexos da gravidez. “Mas sabia que algo estava errado.”

Como outras gestantes, Andressa foi recrutada para fazer o teste de toxoplasmo­se. O resultado, positivo, saiu em 17 de abril. “Entrei em pânico. Havia ficado dois meses sem nenhum tratamento, sabia das consequênc­ias para o bebê.” Menos de uma semana depois, desconfiad­a, ela resolveu fazer um ultrassom.

O bebê já havia morrido. Com mais de quatro meses de gestação, ela precisou fazer o parto induzido. “Tive todas as dores, as contrações. Mas saí de lá sem um bebê. Apenas com um vazio enorme que não sei quando será curado.”

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GERMANO RORATO/ESTADÃO Tristeza. ‘Tive todas as dores, as contrações. Mas saí de lá sem um bebê. Apenas com um vazio’, diz Andressa

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