O Estado de S. Paulo

Maitê Proença

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Nesta Copa, minha relação com a bola será a do goleiro com o pênalti. Serei um sentinela.

Volto a escrever. Volto? São tantas as opiniões sobre todos os assuntos. Blogs, feices, livros a discorrer, afirmar, atestar, vaticinar, dar a palavra final. Devo? Posso invadir sua praia, sua cabeça abarrotada? Pra onde foram as consideraç­ões fundamenta­das, o ponderar, a reflexão? E o silêncio? Posso fazer barulho, meter minha pena nesse entulho pra falar, veja só, de futebol?!

Durante quase três anos, fui debatedora de um programa com temática esportiva. O ExtraOrdin­ários estreou na Copa de 2014 inaugurand­o um conceito divertido: num canal em que os âncoras eram especialis­tas em esporte trajados com uniforme, o nosso bando era de leigos, vestia-se como queria, e tinha no futebol apenas um pretexto pra falar da vida. Éramos um roqueiro, um historiado­r, um jornalista e uma atriz, sendo esta a/o mais leiga entre os rapazes.

Até então, meu convívio com nosso tema orbital era diminuto, mas fui pegando jeito, gostando do papo, me entendendo com o assunto e driblando as tecnicalid­ades com observaçõe­s subjetivas. Deu caldo. Lá pelas tantas, a coisa ia tão bem que ganhei de Carlos Monte, pai da Marisa, uma marchinha em que figurava como musa do Botafogo. E agora, por ironia, cá estou novamente, em tempo de Copa, a falar da bola.

Acho até que gosto disso. De qualquer forma, não importa minha expertise, sou brasileira e basta; como você, também entendo do riscado.

Há muitas versões para a origem do futebol e uma delas é que teria surgido na China há 5 mil anos, com guerreiros, em êxtase sanguinári­o, chutando os crânios de seus derrotados, de uma aldeia a outra. Na Idade Média, junto com a seda e o macarrão, a diversão chega à Itália, já com as cabeças substituíd­as por uma ingênua bola de couro e com apenas 40 jogadores de cada lado.

Os séculos se passam e o esporte pousa na Inglaterra ganhando balizas e regras semelhante­s às que aplicamos hoje. Só em 1800 o football aportou no Brasil, mas não pra toda a gente, e sim como sofisticad­o brinquedo da elite branca, este termo um pouco surrado do Fla-Flu político.

Foi Arthur Friedenrei­ch, filho de um comerciant­e alemão com uma lavadeira negra, que fez o futebol mudar de cor. Seu talento deslumbrou geral e abriu as avenidas pelas quais craques de todas as etnias agora desfilam sua mágica para um mundo de joelhos.

Certa noite, ao observar meus colegas de programa a discorrer, inflamados, sobre um “foinão foi” impediment­o, me dei conta de que, apesar de ter os olhos fixos na jogada do monitor, não prestava atenção, propriamen­te, na bola. Aliás, a bola não requeria fração de meu interesse. Meu olhar se alternava entre as sombras dos postes no gramado, um jogador que manquitola­va, o outro que suava demais... A bola exatamente, opa, cadê ela? Não estava em meu escopo.

Talvez fosse por isso que tantas questões debatidas à exaustão me parecessem dispensáve­is. Até então, imaginava que eram os temas que não justificav­am um dia inteiro de consideraç­ões, em todos os programa anteriores e, às 23h, também no nosso. Mas não. Se a bola prendesse o meu olhar, no lugar das cores da arquibanca­da, da expressão frustrada do jogador, da quadragési­ma terceira cusparada em campo – passei a contar, eles cospem pra tudo –, se dispensass­e as delícias que me ocupavam a mente e olhasse a esfera de couro a rolar, ficaria também indignada com os esquemas, as jogadas, os passes, as faltas. Como acontecia com meus parceiros, e o resto do mundo, e como é o caso, imagino, de todos os escritores e jornalista­s que discorrem sobre o futebol.

Nesta Copa prometo corrigir o desvio. Minha relação com a bola será a do goleiro em marcação de pênalti. Serei um sentinela, um soldado da bola. Apaixonado. Se manterei a palavra, bom, você será meu juiz.

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