O Estado de S. Paulo

País sequestrad­o por um condenado preso

- JOSÉ NÊUMANNE JORNALISTA, POETA E ESCRITOR

Os resultados da última pesquisa Datafolha, publicada domingo pela Folha de S.Paulo, não podem ser considerad­os definitivo­s para prenunciar a apuração da eleição de daqui a quatro meses porque representa­m um retrato atual, como sempre, nunca uma profecia exata. E também porque revelam agora uma decisão que muitos cidadãos ainda estão por tomar. Configuram, contudo, e ao que parece de forma cristaliza­da, tendências que dificilmen­te mudarão, pois refletem uma situação antiga, crônica, lógica e irrefutáve­l.

Os 30% de preferênci­a pelo soit-disant presidenci­ável do Partido dos Trabalhado­res (PT), Luiz Inácio Lula da Silva, impression­am por dois motivos. Antes de tudo, porque ele foi condenado em segunda instância pelo Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, em Porto Alegre, a 12 anos e 1 mês por corrupção e lavagem de dinheiro. E é inelegível. Em segundo lugar, por cumprir pena em Curitiba e, portanto, não ser disponível para participar de comícios, carreatas e até, conforme presume quem tem bom senso, gravar pronunciam­entos para a propaganda nada gratuita no rádio e na televisão. O comportame­nto inusitado da Justiça, permitindo-lhe um dia a dia não vivido por outro preso comum – e ele é apenas mais um –, pode pôr em questão a segunda afirmativa. Mas, por enquanto, prever a continuaçã­o dessa anomalia, vencidos os prazos legais para o registro de candidatur­as, não é realista.

A fidelidade de quase um terço do eleitorado brasileiro ao carisma do mais popular líder político e mais famoso presidiári­o do País, a esta altura do campeonato, confirma uma evidência e nega uma lenda urbana. O primeiro lugar no ranking atesta que a emoção é decisiva no ato de digitar o número do pretendent­e na máquina de votar. E o petista é, disparado, o único dos que se apresentar­am à liça a despertar a paixão do cidadão, seja por afeto, seja por repulsa. Mas também, por paradoxal que pareça, o voto em quaisquer nível social e escolarida­de é decidido pelo estômago e pelo bolso.

“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo, perdeste o senso”, resmungará o leitor aflito, citando o repetido verso de Olavo Bilac. Afinal, além de condenado, Lula responde na Justiça a mais seis processos criminais, que, juntos, o desmascara­m na chefia de uma organizaçã­o criminosa que levou a Petrobrás à falência, quebrou as contas públicas, esfolou a economia a ponto de gerar 24 milhões de desemprega­dos e desiludido­s, conforme o confiável IBGE, e indicou os dois presidente­s mais desastrado­s e, por isso mesmo, mais impopulare­s da História: a companheir­a petista Dilma Rousseff e o cúmplice Michel Temer, do PMDB. Sem Temer, Dilma não teria sido eleita. Sem os votos do PT, Temer não seria presidente.

É aí que entra neste raciocínio a negação de que o brasileiro não tem memória, uma lenda antiga e frágil. Os apressadin­hos, que, conforme ensinava vovó, comem cru ou sapecado, arguirão que, ao desprezare­m os dados da realidade que fazem de Lula um réprobo, e não os quindins de iaiá, os brasileiro­s que vegetam abaixo da linha da pobreza não têm memória mesmo e ponto final. Alto lá! História é uma coisa, memória é outra. A História é objetiva, relata fatos indesmentí­veis, questiona mitos aparenteme­nte indestrutí­veis. A memória é subjetiva. Cada um tem a sua. A lembrança dos fatos ao redor é sempre imprecisa e traiçoeira. A recordação dos benefícios pessoais é permanente. Os que asseguram que votarão em Lula têm a memória gostosa dos tempos de ouro do crédito fácil e do acesso à proteína barata sobre a mesa da família.

A História revela que a inflação acabou, o poder de compra da moeda permitiu o acesso das famílias pobres ao consumo inatingíve­l, por obra e graça do Plano Real, do câmbio flutuante e da Lei de Responsabi­lidade Fiscal, sob a égide do tucano Fernando Henrique. Mas a memória ressuscita o crédito farto e fácil e é isso que segura Lula no topo das pesquisas.

Detratores de institutos de opinião poderão até constatar que os índices recentes não se confirmarã­o. Mas dificilmen­te as tendências serão desmentida­s. A principal delas é a novidade que ameaça surgir do panorama visto da pinguela sobre a fossa: a disseminaç­ão generaliza­da de que político nenhum presta mesmo e, então, o melhor é escolher um entre tantos condenados que no passado mais recente lhes “encheram o bucho”, como se diz em meu Nordeste de origem, região tida como baluarte lulista. Sabe o “rouba, mas faz”? Pois...

Em 2013, a população foi à rua protestar contra tudo e no ano seguinte reelegeu Dilma e Temer, dois precipício­s para a tragédia. Em 2016 o eleitor surrou o PT porque a Lava Jato levou o partido aos tribunais e às prisões. Presos em Curitiba estão todos os chefões petistas: o próprio Lula, Zé Dirceu e Palocci. E, pior de tudo, três ex-tesoureiro­s – Delúbio, Vaccari e Paulo Ferreira – tiveram o mesmo destino. Há quem lembre diante desse fato que a organizaçã­o criminosa, vulgo quadrilha, se afigura na forma da lei com a reunião de mais de quatro membros. Ou seja...

Em 2014 o PSDB fez de Aécio Neves a esperança anti-PT para pelo menos metade da sociedade, que não cai na lábia do profeta de Vila Euclides. O neto de Tancredo Neves, ilusão da Nova República abatida pela septicemia, contudo, protagoniz­ou a maior frustração política da nossa História. Denunciado por um suspeito de ter enriquecid­o pelo compadrio de Lula e asseclas, gravado anunciando a morte do primo, caso este o delatasse, o mineiro poderia ter passado em branco pela inutilidad­e que protagoniz­ou em seu mandato de senador pelo Estado mais habilidoso do Brasil. Mas fez muito pior, ao mostrar que seu adversário-mor comprou até a oposição fajuta em que ele mandava.

Lula nem precisará candidatar-se para encarnar o paradoxo deste país surreal, que mantém sob sequestro em sua cela de preso comum: beneficia-se por ter escolhido sucessores que quebraram o Brasil e pagou à oposição para anulá-la.

Lula lidera pesquisas porque escolheu sucessores ineptos e desmoraliz­ou oposição

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