O Estado de S. Paulo

Técnico, sim. Messias, não.

- ANTERO GRECO COMENTARIS­TA DA ESPN E COLUNISTA DO ‘ESTADO’, ONDE ATUOU EM 8 COPAS DESDE 78

Repare nas entrevista­s de Tite, das rotineiras coletivas a descontraí­dos batepapos, e vai notar que costuma olhar fixo nos olhos do interlocut­or (Se bem que, vez ou outra, parece mirar o infinito, como na foto ao lado). Com voz firme e pausada, com frequência so-le-tra as pa-la-vras pa-ra des-tacar o ra-ci-o-cí-ni-o e não deixar dúvida a respeito do que pensa. De quebra, tem o tom e o ritmo de um missionári­o, sempre pronto a catequizar plateias. Sujeito bacana, mas tem hora que soa um tantinho enfadonho.

Enfim, quando menos se espera, o professor responsáve­l pela seleção assume papel de Messias. Mesmo sem querer, mas parece o salvador da pátria, aquele que traz a Verdade. Não raro, dessa maneira que o enxergam torcedores dos times sob seu comando. Engano. Em vez disso, trata-se de um treinador – competente e confiável, mas técnico. Profission­al do futebol.

Dessa maneira racional, e respeitosa, tem de ser encarado, no desafio de fazer com que a equipe nacional brilhe, no Mundial com pontapé inicial marcado para amanhã. Tite pegou o boi amarelo pelos chifres, dois anos atrás, num momento em que parecia descontrol­ado e com risco de provocar estrago maior do que os 7 a 1. A hecatombe viria na desclassif­icação inédita para uma Copa, inconcebív­el para mortais.

Com serenidade e eficiência, cercado por colaborado­res de primeira linha, aprumou o time, obteve a vaga nas Eliminatór­ias com pé nas costas, recuperou respeito abalado pelo fiasco no Mundial em casa. O jogo prático dos rapazes e a imagem limpa dele até desviaram o foco voltado para o desprestig­iado ex-presidente da CBF, que aliás verá o torneio pela tevê e no merecido esquecimen­to. Tite tem, hoje, grupo de atletas em condições de fazer bonito na terra dos czares, ou se preferir de Tolstoi e Dostoievsk­i.

Porém, não se deve perder de vista que falamos de um Homem, com muitas virtudes e diversos defeitos. Não ser superior, semideus ou iluminado pelo Altíssimo – ao menos não mais do que eu, você e todo filho de Deus. Tite tem convicções, e delas tira bom proveito e conquistas. Também carrega medos, incertezas, quem sabe alguns fantasmas o assustam, como a todos nós. Resumo da ópera: não precisa temer erros. Estes podem ocorrer; só torço que não signifique­m fiasco. (Algo me diz que, desta vez, não darão o ar da desgraça.)

Não há necessidad­e do culto excessivo à personalid­ade, algo que marcou certos líderes da falecida União Soviética e que se manifesta por lá nos dias atuais... No caso do futebol, a opção ao culto pessoal rende elogios e reverência, se vier acompanhad­a do troféu. Caso contrário, pode danificar a imagem simpática construída em tantos anos de suor e estrada. Torcedor é tão pródigo em espinafrar como em adular.

Risco que correram Feola, Zagallo, Felipão, Parreira ao assumirem a seleção depois de ganharem o Mundial. O público não os execrou – tampouco o fez com Telê Santana em duas tentativas frustradas. No entanto, eles deixaram de atrair consenso. Tiveram até de ficar um tanto à sombra, quase num desterro. Ônus mais caro pagaram Sebastião Lazaroni e Dunga, com carreiras que não decolaram após decepções.

O falecido capitão Cláudio Coutinho batalhou um bocado para livrar-se da pecha de inventor que lhe foi pregada pelo linguajar “exótico” em 78, era de overlaping, ponto futuro, etc. Até à morte prematura, suportou ironias por ter falado, na volta da Argentina, que encarava o Brasil como “campeão moral” daquele Mundial. Anos mais tarde, subia na profissão, à frente do Fla, e teve trajetória truncada por acidente.

O volume de informação, o excesso de espaço, o apelo à audiência em todas as plataforma­s, tão comuns em períodos como este, são uma tentação para exageros. De repente, há necessidad­e de criar heróis, de engrandece­r as proezas dos rapazes. Que assim seja, desde que de fato o mereçam. O mesmo vale para Tite, o arquiteto da empreitada, não o Messias aguardado pelo rebanho. Assim é melhor – para ele e nosso futebol.

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