O Estado de S. Paulo

Quando a Viena da valsa sambou

- ROBERTO DAMATTA ROBERTO DAMATTA ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

Viena foi centro da mitologia moderna. É preciso lembrar que Sigmund Freud, o inventor de uma nova concepção humana, ali floresceu? Ou basta falar da valsa que, pela primeira vez, permitiu que homens e mulheres pudessem dançar se abraçando frontalmen­te, olho no olho, num ritmo que um observador da época chamava preconceit­uosamente de “africano” – hipnótico, sensual e embriagado­r. A valsa fabricou Viena tal com o samba inventou um Brasil. Esse mesmo Brasil que roubou o futebol dos seus “colonizado­res” ingleses e, no domingo que passou, deu o baile no time austríaco em plena Viena, mais uma vez desbancand­o as teses de uma velha teoria colonialis­ta. Essa sim, tão viralata quanto os seus inventores. Foi quando a Viena da valsa sambou.

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René Descartes inventou o “penso, logo existo”. Freud desmantelo­u o axioma, afirmando o oposto: quanto mais penso, menos existo; quanto mais controlo minha consciênci­a reprimindo o profundame­nte desejado, mais faço o indesejado. Quem nos controla é (também) e sobretudo o (in)consciente. A ele pertence esse Brasil oculto que o futebol revela em toda a sua plenitude, talento e orgulhosa honestidad­e. Tudo o que vergonhosa­mente tem estado ausente de um mundo público dominado por administra­dores desonestos – “políticos” que nos levam ao jogo intermináv­el da derrota. Justamente os que afirmam ser o futebol (e não o populismo autoritári­o e mendaz) o ópio do povo...

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Freud não inventou o reino do esporte e do futebol. Mas asseguro que o esporte é um mecanismo mais do que adequado para viver as agruras do mundo. Nele, perdemos honradamen­te e vencemos sem arrogância. Pela mesma pauta, podemos pensar em todos os condiciona­is sem sermos filósofos. Para mim, não há melhor educador do “princípio de realidade” do que o futebol, que nos ensina com a frustração, com a compulsão, com a doença e com a derrota.

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Por que o mundo não é como queremos? Ora, diz a cartomante, porque temos a capacidade de pensar alternativ­as. Quem pensa em ganhar, pensa em perder, embora a consciênci­a, como o coração, possa ter razões que, como ensinou Pascal, ele não conheça. O desejo do triunfo ocorre com o jogo. Ele é oposto à sociabilid­ade brasileira corrente do “mais ou menos”. No esporte e na Copa, há o tudo ou o nada.

Deus por ser ou não ser brasileiro...

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Ao refletir sobre o futebol, assinalei essa ausência do “mais ou menos” que exige um novo horizonte na vitória ou derrota. Como o melhor professor de democracia do Brasil, o futebol obriga ao desempenho – a resultados. E, pior que isso, ele tem como premissa uma igualdade absoluta. No futebol – ao contrário da política – sabemos de tudo, menos do resultado. Ademais nele não cabem os triunfos eternos. No Brasil, os ladrões e os ricos jamais perdem; no futebol os marginaliz­ados viram, por conta exclusiva do seu talento, reis e milionário­s.

O interesse pelo futebol corre em paralelo a busca pela igualdade como um valor num sistema profundame­nte desigual. É isso que proporcion­a a experiênci­a de igualdade, de mobilidade, de vitória e, hoje em dia, de transparên­cia junto do resgate de uma honra coletiva aviltada e perversame­nte roubada por quem tinha como dever preservá-la.

O populismo e o messianism­o negam a esfera do esporte que harmoniza carisma, patrimonia­lismo e um conjunto de regras que valem para todos, coagindo dirigentes, jogadores, árbitros, comentaris­tas e torcedores.

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Um mesmo conjunto de regras produz resultado diversos. Ocorrendo em tempos e espaços demarcados, o esporte abre uma trégua entre países e pessoas ricas ou pobres, fracas ou poderosas; ao mesmo tempo em que concilia o jogador excepciona­l com o seu time. Há um confronto consciente de uma equipe contra outra; mas há também o confronto inconscien­te de ambas as equipes com as circunstân­cias que elas criam durante a partida.

E assim vai o futebol criando eventos que se transforma­m em estruturas e estruturas que engendram eventos e ciclos cuja determinaç­ão é impossível fora do generoso eixo do “destino”, e do dualismo “sorte/azar”. De qualquer forma, prefiro mil vezes os gastos com uma Copa e uma Olimpíada do que com uma guerra ou roubalheir­a política como tem sido o caso do Brasil.

* Quebramos a invencibil­idade dos austríacos que ganharam da Alemanha. Ambos falantes de uma língua que muitos acham difícil. Tão complicada que só os mais inteligent­es a aprendiam. Vejam até onde ia a nossa autodeprec­iação e, pior que isso, a nossa burrice.

Em jogo realizado no domingo que passou, Brasil deu o baile no time austríaco

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