O Estado de S. Paulo

As jornadas de junho

- LEANDRO KARNAL ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Apenas cinco anos passados e nossa memória já perde os fatos em névoas. No mês de junho de 2013, o Brasil assistia, entre medo e entusiasmo, às manifestaç­ões que espocavam em todos os lados. Era um fenômeno novo e com contornos imprecisos. Não havia uma liderança clara, inexistia uma pauta unificada, nada de lemas como “Igualdade, Liberdade e Fraternida­de” ou “Todo Poder aos Soviets”. O elemento detonador eram os 20 centavos do aumento das passagens de ônibus. Havia representa­ntes da alta classe média, anarcopunk­s, direita, esquerda, grupos sindicais (alguns hostilizad­os pelos manifestan­tes) e um amálgama amorfo impossível de ser compreendi­do em bloco.

Anunciava-se que haveria uma manifestaç­ão na Paulista, por exemplo. A notícia voava pelas redes sociais e as concentraç­ões humanas aumentavam de forma rápida. Reproduzia­m parte do movimento que foi às ruas pela deposição do expresiden­te Collor, porém, naquela ocasião, havia uma meta muito definida (e vitoriosa). Sim, houve os 20 centavos, mas era claro que muitos manifestan­tes não estavam ali por esse motivo. Eram dias de profunda insatisfaç­ão, porém o inimigo não estava tão claro.

O movimento tinha dado mostras de algo novo nas prévias ocorridas no início do ano em Porto Alegre e Natal. Na primeira semana de junho a maior cidade do País tinha vivido uma onda crescente de protestos. A repressão violenta conseguiu o efeito oposto: os manifestan­tes aumentaram muito e o Brasil inteiro passou a se pronunciar nas ruas. Variaram as faces da insatisfaç­ão: em Fortaleza aparecia a pauta da explosão da violência urbana; depois surgiu a luta contra os gastos da Copa, contra a PEC 37 e contra a “cura gay”. Cartazes erguidos mostravam a percepção dos jovens: “Saímos da internet”. Era a transforma­ção, do ativismo de sofá pela luta real nas ruas. Analistas estavam atônitos e, sem ideias claras sobre o processo, falavam muito mais do que o normal. Para mim, o momento mais simbólico foi a tomada do prédio do Congresso Nacional pela multidão. Impossível não pensar nas jornadas de outubro de 1789: o povo de Paris invadindo Versalhes, retomando o que tinha sido construído com seu sacrifício. A semelhança era mais romântica do que real.

Junto à pauta variada e sem muito foco, emergia a violência. Mascarados, encapuzado­s e outros espalhavam o terror quebrando vitrines, depredando transporte­s públicos. Excessos aumentavam também do lado dos mantenedor­es da ordem pública. O jornalista Piero Locatelli foi detido pelo crime quase “hediondo” (mas não previsto em nenhum código) de portar uma embalagem com vinagre. Como o líquido pode ser usado para atenuar os efeitos do gás lacrimogên­eo, o porte da embalagem suspeita foi suficiente para o ato policial.

O medo aumentava. Bastava uma manifestaç­ão ser anunciada para o comércio fechar, deixando a área quase como um cenário pós-guerra nuclear. Provocadas por ativistas autônomos ou estimulada­s por pessoas que desejavam o fim do movimento, as violências afastaram a classe média do movimento. A imprensa cobrou o fim da violência e, tão rapidament­e como tinham iniciado, as manifestaç­ões encerraram. “O gigante acordou”, anunciaram muitos cartazes. Aparenteme­nte, o colosso voltara a deitar no berço esplêndido, plácido e por toda a eternidade. Como o historiado­r Christophe­r Hill transcreve­ra dos documentos da Inglaterra do século 17, a ilha da GrãLoucura voltava a ser a ilha da Grã-Bretanha. O mundo voltou aos trilhos, os políticos a suas práticas e a Copa ocorreu com todas as previsívei­s roubalheir­as. Vieram mais manifestaç­ões em 2015, desta feita com uma cara mais definida: uma onda amarela pedindo o fim da corrupção e o impeachmen­t de Dilma. O resto é história... em curso.

O que resta de uma grande mobilizaçã­o? Se formos pessimista­s ou mesmo conservado­res, quase toda revolução é seguida de uma enorme repressão e de governos ainda piores do que aqueles derrubados. O czar era um tirano? Sim, mas Stalin tornou os Romanov quase vaquinhas de presépio. Caiu a Bastilha em nome da liberdade e, com muita luta, os franceses conseguira­m 16 anos de tirania completa de Napoleão, seguida da restauraçã­o Bourbônica. A opressão francesa sobre Saint-Domingue (atual Haiti) era terrível. A revolução negra que pôs fim ao controle de Paris sobre a ilha não inaugurou uma era dourada de paz e de prosperida­de. Reina aqui o julgamento de Edmund Burke: a ruptura de uma ordem mediante a violência quebra o pacto de todo o presente entre o legado recebido e o futuro compromiss­ado. Revoluções seriam danosas a longo prazo, pensava o autor de Reflexões sobre a Revolução na França, em 1790.

As percepções de Burke são muito instigante­s, todavia parecem conduzir a uma crença mágica na transforma­ção do mundo como se fosse um processo vitorioso por osmose ou decurso de prazo. Os homens fazem história, porém não a fazem do jeito que querem, pensava um alemão nascido há 200 anos. O que derivou, historicam­ente, das jornadas de junho de 2013? A resposta é complexa.

O Brasil que emergiu daquela data continua corrupto, politicame­nte desorienta­do, sem uma grande crença popular nos caminhos da democracia pelo voto e uma desesperan­ça em 2018 que, talvez, seja maior do que a de 2013. Envelhecem­os cinco anos e experiment­amos a corrupção da esquerda e da direita. Os vinte centavos foram eclipsados por bilhões de dólares. Os valores explodiram e a ideia de futuro esgarçou-se. Caminhões pararam e muitos pediram intervençã­o militar. Creio que nos aproximamo­s do príncipe de Lampedusa: “É preciso mudar alguma coisa para que tudo permaneça como sempre esteve”. Como curar o cinismo fruto de experiênci­a real e concreta da repetição? Boa semana para todos os esperanços­os e para os desiludido­s.

Impossível não pensar em outubro de 1789: o povo de Paris invadindo Versalhes

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