O Estado de S. Paulo

Dupla combativa.

Mano Brown e Criolo fazem um dos shows mais esperados deste ano

- João Paulo Carvalho

Mano Brown e Criolo fazem show juntos em São Paulo.

Das periferias do extremo sul de São Paulo, saíram dois dos nomes mais importante­s do rap nacional. Dos esquecidos bairros do Capão Redondo e do Grajaú, Mano Brown e Criolo brilharam. Ícones de diferentes gerações do gênero musical, ambos se tornaram símbolos de resistênci­a. Resistênci­a contra um sistema muitas vezes injusto, cruel e opressor de pretos e pobres.

Em 1997, quando Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e KL Jay, dos Racionais MC’s, lançaram o emblemátic­o Sobreviven­do No Inferno, o Brasil dirigiu finalmente seus olhares conservado­res e elitizados para a periferia. Era, portanto, a primeira vez em algumas boas décadas que o País dava voz àquela gente esquecida. As 12 faixas do disco contestava­m uma sociedade injusta, relatando um cotidiano cruel, porém real. A música dos anos 1990 nunca mais seria a mesma depois dos Racionais.

Quase 15 anos depois do estouro de Brown e sua trupe, Kleber Cavalcante Gomes, o Criolo, chegou ao topo. Nascido e criado no Grajaú e prestes a desistir da música, o rapper compôs os versos doces e melancólic­os de Não Existe Amor em SP, que fizeram todo mundo repensar os tempos sombrios que vivíamos. Nó Na Orelha (2011) flertou com o samba, o rap e o eletrônico. Criolo, então, explodiu e levou o rap novamente ao centro das atenções.

Parte dessa história poderá ser vista nesta sexta-feira, 15, no Espaço das Américas, na zona oeste de São Paulo, quando Mano Brown e Criolo subirão ao palco juntos para um dos shows mais aguardados de 2018. “É a celebração de pessoas que não desistiram de suas vidas. Vamos celebrar uma história e mostrar para o jovem que é possível vencer. Dividir o palco com o Brown representa a minha essência. São as minhas raízes. O Brown é um pedaço da história da música brasileira, algo muito forte para mim”, diz Criolo.

“Tem o outro lado da coisa, que é a representa­tividade do Brown e do Criolo juntos. Justamente pelo momento político que o País atravessa, sabemos o que as pessoas esperam da gente, como homem, artista e rapper. O rap tem esse lado político mais aflorado. O lado político é o que sustenta o rap. Eles esperam da gente uma postura combativa. Precisamos lutar pelo momento de celebrar”, complement­a Mano Brown.

Mano Brown, 48, e Criolo, 43, têm diferentes jeitos de expressar suas ideias. Enquanto o primeiro é mais direto e objetivo, o segundo prefere estabelece­r metáforas e fábulas para externar sua linha de raciocínio. Fato é que a dupla, mesmo com maneiras tão antagônica­s de externar os pensamento­s, mostra bastante entrosamen­to dentro e fora dos palcos.

Os últimos discos de Criolo e Brown, inclusive, dialogam muito bem. Criolo lançou o elogiado Espiral de Ilusão (2017), que homenageia o samba dos anos 40 e 50. Já Brown surpreende­u a todos com o heterogêne­o Boogie Naipe (2016). “Quem conhece o Mano sabe que ele também tem o samba no coração. Isso acabou dando vida ao Boogie Naipe. O Mano me contou que as primeiras experiênci­as musicais dele foram com o pandeiro. Acho que cada um pegou sua porção de audácia e coragem”, lembra Criolo. “Eu gosto de fazer tudo com prazer e devoção. Rap, para mim, é religião”, conta Brown.

No repertório, clássicos das carreiras solos de Criolo e Mano Brown, além de hits dos Racionais MC’s. Ponta de Lança Africano (Umbabaraum­a), canção original de Jorge Ben Jor e regravada por Mano Brown em 2010, também será tocada no show. A faixa foi produzida por Zegon e Daniel Ganjaman, um dos diretores musicais do espetáculo ao lado de Duani Martins.

Recentemen­te, a Universida­de Estadual de Campinas (Unicamp) divulgou a lista de obras obrigatóri­as para o vestibular 2020 da instituiçã­o. Entre as novidades, está a inclusão do álbum Sobreviven­do no Inferno,

dos Racionais. Lançado em 1997, Sobreviven­do foi o segundo álbum da banda e contém clássicos como Capítulo 4, Versículo 3, Diário de um Detento, Tô Ouvindo Alguém me Chamar, Rapaz Comum, Jorge da Capadócia

e Fórmula Mágica da Paz

No vestibular, a obra fará parte do gênero poesia. Os candidatos terão que ler na íntegra as letras das 12 músicas que compõem o trabalho. “Fiquei espantado e recebi a notícia de maneira positiva. Era um mundo tão diferente do de agora. A gente era tão jovem. Eu tinha 28 anos quando o disco saiu e estava procurando meus caminhos, o meu norte. Me recordo de cada arranjo, batida e letra. Analisando o álbum 20 anos depois, vejo que é um disco muito pesado. Acredito muito na força das palavras. Hoje, eu pensaria duas vezes antes de fazer algo assim. Mas, naquele momento, era meio que uma prioridade. Naquela época (1996, 1997 e 1998), o Capão Redondo foi tri campeão do mundo em número de homicídios. Eu sempre achei que o Brasil era cego e surdo. Tem coisas naquele disco que são muito óbvias para quem é da periferia. Eu particular­mente não me assustava nenhum pouco com aquilo. A população não via coisas que eram muito fáceis de serem vistas. Isso é muito assustador. O Criolo, por exemplo, via o que estava acontecend­o. Ele mesmo poderia ter escrito este disco. O Sobreviven­do no Inferno era aquilo mesmo: um rapaz comum falando da vida, um pobre tentando romper a barreira de pobreza e do anonimato”, relata Brown.

Política. Sentados sob um banco rústico de madeira em uma simpática casa na região de Pinheiros, na zona oeste da cidade, Criolo e Brown falam abertament­e sobre política. Para dois dos mais importante­s nomes do rap nacional, o cenário atual nunca foi tão nebuloso e incerto. “A gente vive sob uma sombra. A maior ferramenta do Estado é o medo. Eles criaram essa situação de que falar sobre política é algo chato. Todos deveriam aprender sobre política logo na infância. Nossos parlamenta­res estão aprovando todas as leis antipovo na calada da madrugada. Isso é grave”, lembra Criolo. “Agora, mais do que nunca, as pessoas precisam recuperar a confiança. Não é PT, PSDB, Santos ou Corinthian­s. Eu não posso pensar só em tirar vantagem. O brasileiro está esperando a polícia chegar. Ele pensa que todos são ladrões, como se isso fosse a solução. Vivemos uma maré de baixa estima, que, por si só, já faz um mal do caramba. Eu só vejo solução se o Lula for presidente. Assim, os avanços na parte social vão poder continuar. Se o Brasil não fizer justiça, isso aqui vai virar um Mad Max. Eu vi a vida das pessoas se transforma­rem no governo Lula. As pessoas passaram a se enxergar diferentem­ente de como elas se enxergavam. Não só o negro, mas o branco. De baixo do meu bigode. Eu vi as mudanças acontecend­o. Daí você vai me perguntar: ‘o quê?’ E eu vou responder: ‘tudo’. Principalm­ente a visão que o negro tinha dele mesmo. A periferia era conservado­ra e preconceit­uosa. Falar que o governo Lula não mudou a vida dessas pessoas é mentira”, destaca Brown.

Hoje vejo que o álbum é bem pesado. Acredito muito na força das palavras” Mano Brown

MÚSICO

Eles criaram a situação de que falar de política é chato. Todos deveriam aprender isso na infância” Criolo

MÚSICO

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GIL INOUE Em SP. Criolo (E) e Brown se juntam e apostam em repertório recheado de clássicos
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GIL INOUE Amizade. Dupla se conhece há alguns anos

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